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Por uma cultura de paz e por menos ódio nas escolas

por Aline Kerber via Nei Alberto Pires*

Mais círculos de paz, metodologia da justiça restaurativa, 
e não de fileiras de ódio e incitação de violência que só produzem 
e reproduzem a ignorância que cega e a irracionalidade 
que exclui e mata as pessoas, a escola, o conhecimento 
e o nosso futuro como humanidade!

Circulou indevidamente, nesta semana, um vídeo de 33 segundos nas redes sociais, gravado por um aluno, de uma briga entre adolescentes de um tradicional colégio privado de Porto Alegre no simbólico último dia de aula antes das férias de julho, sem que ficassem claros os motivos que levaram à agressão mútua, ou mesmo, a pró-atividade do professor de uma disciplina não informada. Inobstante, não queremos falar sobre a briga, pois seria certamente mera especulação, já que não tivemos acesso à filmagem na sua íntegra e não gostaríamos de fazer um juízo de valor equivocado.

Embora refutemos toda forma de violência e reafirmemos que nenhuma deva nos ser estranha, relevada ou silenciada, nesse caso, o mais importante é problematizarmos as maneiras de lidarmos com ela. Nesse sentido, queremos analisar as representações sociais de adultos, a maioria pais de alunos dessa e de tantas outras prestigiadas escolas privadas da paróquia, que deliberadamente atacaram adolescente, sem embasamento ou empatia, vociferando ódio, também uma violência e um crime. Ódio sustentado por preconceitos de raça, gênero e de orientação sexual, agudizado pelo cada vez mais reiterado, infelizmente, patrulhamento ideológico contra a escola e professores(as).

Recebemos de vários grupos e de diversas pessoas o tal vídeo, fotos da sala de aula, posts e áudios com lamentáveis comentários sobre o fato. Compartilharemos, neste artigo, alguns desses registros. Acompanhe-nos e tirem as suas próprias conclusões.

Para a psicopedagoga Alcione Marques, “é preciso evitar que crianças e adolescentes sejam expostos a situações humilhantes. “Vivemos uma crise de autoridade, temos professores desprestigiados e frustrados, que precisam ter apoio e preparo, também é necessário que a escola saiba estabelecer regras e o aluno entenda que suas ações têm consequências”.

Vivemos em um época de baixa da ciência, do conhecimento, da universidade e de alta de ideias de financeirização da educação pública e de “Escola Sem Partido”, embora os criadores desse projeto estejam insatisfeitos com o governo federal e, ao que tudo indica, também em crise financeira, como alegou a sua principal liderança para “pôr fim ao movimento”.

Claramente, contudo, essa ideologia continua viva em cada manifestação que coloca o professor na condição de suspeito e fomenta a desconfiança como parâmetro para a relação entre discentes e docente, estimulando a gravação de aulas para interditar conteúdos que fazem parte de conquistas civilizatórias, como a educação sexual e de gênero, entre outros direitos humanos fundamentais. Pasmem, atribuem, equivocadamente, esses temas a uma agenda de “esquerda” ou “comunista”, como preferem, e questionam a relevância, por exemplo, da Sociologia e da Filosofia, vitais para uma reflexão minimamente crítica, portanto potencialmente emancipatória, da realidade.

Cresce, no seio das escolas particulares e algumas escolas públicas, um movimento de mães e pais que defendem o que nem deveria estar sendo colocado em xeque: a autonomia das escolas, a liberdade de cátedra dos professores e professoras, o conhecimento como forma de emancipação e libertação dos adolescentes e jovens, a pluralidade de pensamentos. 

Além disso, com o advento das redes sociais e do uso corrente de celulares e dispositivos móveis, os(as) alunos(as) facilmente gravam e publicam as aulas, mesmo sem autorização e não sendo um direito a priori, já que viola uma série de normas constitucionais e regras legais, e expõem seus colegas, os(as) professores(as) e a própria escola.

Mas não são as crianças e adolescentes que violam as regras de compartilhamento de imagem de menores e de aulas de professores(as), adultos também o fazem e são os principais responsáveis pela viralização de vídeos dessa natureza em grupos escolares de Whatsapp, como nesse caso.

Incrível o que falaram os adultos comentaristas dessa violência. Vejam, sem filtro: “dominada (a escola) pelo ideário de esquerda”; “ideologia de gênero”; “risco a que estão expostos os alunos da referida instituição (em razão da ideologia)”; “princípios (educacionais) impostos pela violência”; postura omissa e covarde do professor”; “a confusão teria começado em função da própria atitude do professor”; “eles estavam em uma aula de sociologia, dá para ver bem pela cara do bosta do professor e estavam falando aquelas imbecilidades comunistas”; “um professor doutrinador do PSOL passou na sala de aula um vídeo para mostrar aos alunos o abuso da polícia. Qual o objetivo disso?”…

Ora, por que falar sobre violência policial? Talvez porque vivemos no país que mais sofre com essa problemática, que também vivenciamos em Porto Alegre, basta ler jornal ou abrir o Facebook. Quer dizer que a escola não deveria ter trazido esse tema para debate? Então, a escola deve estar alheia às questões atuais que nos atingem a todos(as)?

Preferem dividir a sociedade desde a escola com partidarização e a interdição do conhecimento? Não desejam que os jovens pensem em soluções para os problemas concretos do país e do mundo como este ou a desigualdade social e racial que levou o Brasil à liderança mundial, tendo a polícia que mais morre e mais mata!

Quiçá, não saibam ou não reconheçam, as vítimas fatais dos dois lados, da polícia e da população, são jovens negros de periferia, com baixa escolaridade, que pertencem, como todas e todos nós, a uma sociedade racista, estruturadora da necropolítica.

E mais: 70% das vítimas dos mais de 62 mil homicídios anuais no país e a maioria dos 800 mil apenados também têm esse perfil. Sobre isso, os “árbitros” desse triste episódio da semana sentenciam: “entraram no papo do racismo e a guria do cabelo “x” é negra, guria que se diz guri, ela até mudou o nome dela, sabe estes papos assim (sobre racismo)”; “pois bem, uma menina, acreditem que a de cabelo “x” é uma menina”; “a Maria João”;” É claro que o menino foi acusado de ser covarde por bater numa mulher (seria menina, não?), mas é uma mulher com pênis”; “o moleque (que bateu) é tri de boa, eu conheço ele… a guria tava se crescendo na aula…comunista…quis dar uma mitadinha (vem de “mito”, imaginamos), veio para cima dele e tomou um aplauso (em verdade, um tapa no rosto)”.

Como se pode constatar, o preconceito como legadonasce no seio familiar e esses comentários deixam isso bem evidente. Daí porque sustentamos que essa violência, objeto dos comentários, emergiu na escola, mas foi semeada e é cultivada, em parte, pela família e pelos pais.

Uma cidadania ética e consciente, forjada no convívio entre as diferenças e no respeito às diversidades, é formada na primeira infância junto à família, nas inúmeras configurações e arranjos familiares possíveis, depois na escola e nas demais instituições sociais de socialização secundária.

As famílias, o Estado e a sociedade civil precisam disputar as juventudes que estão à margem com políticas públicas inovadoras de inclusão, de proteção e de promoção de direitos e com outras tecnologias de governo mais eficazes para resgatar o sentido e a valorização da vida com outras narrativas a serem construídas por intermédio da educação, da arte e da cultura. E que coincidência tantos dados de morte concentrados nesse perfil social: jovens negros de periferia.

Deixamos os nossos filhos na escola para estranhar essa realidade, para desnaturalizá-la, para pensarem em novas soluções e para entenderem que as violências, no plural, perpassam as relações sociais, o Estado, as polícias e a todos nós a partir dos preconceitos de classe, de raça, de gênero, de orientação sexual, de capacitismo, de credo religioso e de todo tipo de intolerância, discriminação e opressão.

Até quando a sociedade ficará inerte frente à falaciosa ideia de ideologização da escola propagada por extremistas de direita, ao incentivarem, conscientes ou não, a prática de violências, a exemplo do compartilhamento de vídeos seguidos de apelos contrários à liberdade de aprender e ensinar e à benfazeja pluralidade de ideias, própria da democracia?

E como resolver o preconceito macrossocial que chega até a sala de aula, estigmatizando, de forma descontrolada, na Internet, adolescentes e gerando uma ambiência beligerante em toda a comunidade escolar?

Necessitamos de mais debates sobre sobre racismo, gênero, liberdade, diversidade, ciberética e desigualdade. O sectarismo, que não se confunde com a radicalidade (de ir até a raiz) no pensar e no agir, e sua face mais conhecida, o extremismo, antagoniza a sociedade e pólos que não se encontram, impossibilitando o diálogo e a negociação, gerando medos, adoecimentos e vulnerabilidades que vitimam ainda mais alguns grupos, sobretudo os “matáveis”.

Apostemos, ainda, na disseminação da justiça restaurativa nas escolas para recompor as relações, mediar os conflitos, restaurar os danos e restabelecer a confiança, que só se vislumbra com respeito e limites, entre alunos(as) e professores(as), entre mães, pais e escola. Isso que se espera de uma educação democrática.

Carecemos de mais círculos de paz, metodologia da justiça restaurativa, e não de fileiras de ódio e incitação de violência que só produzem e reproduzem a ignorância que cega e a irracionalidade que exclui e mata as pessoas, a escola, o conhecimento e o nosso futuro como humanidade!

Aline Kerber é presidenta da Associação Mães e Pais pela Democracia (AMPD), em parceria com Eduardo Pazinato, membro da Comissão Jurídica da AMPD. Texto publicado originalmente no blog Neipies.

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