por Lívia Sant’Anna Vaz via Carta Capital*
Os registros de intolerância religiosa multiplicaram-se nos últimos meses, sob velhas e novas vestes
O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi instituído pela Lei nº 11.635/2007, que incluiu a data no Calendário Cívico da União para efeitos de comemoração oficial anual em todo o território brasileiro. A data marca o falecimento de Mãe Gilda, sacerdotisa do Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador-BA, vítima de violência verbal, física e patrimonial, por professar religião afro-brasileira. Apesar de sua importância simbólica, no atual contexto das cotidianas violações do Estado laico e de recrudescimento do ódio religioso no Brasil, 21 de janeiro não é um dia a ser comemorado, mas a inspirar reflexão e (re)ação.
O escravagismo colonialista – que invade a terra brasilis para descobrir o Brasil – não se contentava com o aprisionamento e subjugação dos corpos negros. Era necessário também dominar suas almas e seu espírito livre; extirpar suas raízes, memória e ancestralidade, o que incluía implacável persecução da religiosidade dos africanos, elemento que consolidou a resistência do povo negro. Nesse sentido, as religiões afro-brasileiras foram submetidas, ao longo da história, não apenas à marginalização social, mas também à repressão do Estado, por meio de seu aparato jurídico e policial.
Antes mesmo da outorga de sua primeira Constituição – a Constituição Imperial de 1824 –, a ordem jurídica brasileira foi regida, sucessivamente, pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. O Livro V das Ordenações Filipinas criminalizava a heresia, com penas corporais (título I), e a feitiçaria (título III), com a pena capital.
O Código Criminal de 1830 não previa crimes associados à feitiçaria, já que as manifestações religiosas dos negros escravizados pareciam sob controle, até mesmo a partir da promulgação, em 1832, de Decreto que obrigava os escravos a se converterem à religião católica. No entanto, em consonância com as normas da Constituição de 1824, o Código criminalizava, em seu artigo 276, a celebração pública, ou em casa ou edifício com forma exterior de templo, de cultos de outra religião, que não fosse a oficial do Estado. A pena era de dispersão do culto pelo juiz de paz, além de demolição da forma exterior do templo, sem prejuízo da sanção de multa imputada individualmente aos participantes das reuniões. O Código Penal de 1890, por sua vez, tipificava práticas como o espiritismo e o curandeirismo, diretamente associadas às religiões de matriz africana.
Com a promulgação da Constituição Republicana de 1891, – que estabeleceu a separação entre Estado e Igreja e revogou, em sede constitucional, a limitação aos cultos não católicos –, consolidava-se em termos normativos constitucionais a liberdade de crença e culto no ordenamento jurídico brasileiro. A formalização jurídico-constitucional do Estado laico e da liberdade religiosa, no entanto, não assegurava, no plano fático, igual garantia às religiões afro-brasileiras.
Foi justamente sob a égide do recém-instituído Estado laico que, em 1912 – no contexto da disputa pelo governo local – ocorreu em Alagoas o episódio que ficou conhecido como Quebra ou Operação Xangô, culminando na destruição dos principais terreiros da capital alagoana e no espancamento, em praça pública, de religiosos afro-brasileiros(as). O evento, que se espalhou pelo interior do estado, resultou no silenciamento dessas práticas religiosas que passaram a evitar o uso de tambores, danças e palmas em seus rituais e, por isso, tornaram-se conhecidas como xangô-rezado-baixo.
Na Paraíba, a Lei nº 3.443, de 6 de novembro de 1966, determinava que sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matriz africana se submetessem a exame de sanidade mental, com emissão de laudo psiquiátrico.
A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, consagrava a liberdade de crença, condicionando, no entanto, o exercício de cultos religiosos à conformidade com a ordem pública e os bons costumes (artigo 153, § 5º). Por óbvio que tal condição atingia as religiões afro-brasileiras, que, depreciadas enquanto exercício da religiosidade dos negros, eram associadas à perturbação da ordem e dos bons costumes.
Na Bahia, a intervenção do poder público nas religiões de matriz africana evidenciava-se também na imposição – a partir da Lei nº 3.097, de 1972, – de cadastramento dos terreiros nas Delegacias de Jogos e Costumes, exigência que apenas foi abolida em 15 de janeiro de 1976, por meio do Decreto-Lei nº 25.095. Nesse período, era habitual a ostensiva repressão policial aos terreiros, com interrupção de atividades religiosas, prisão de filhos de santo e apreensão de objetos sagrados, muitos destes ainda expostos em museus do crime.
O percurso histórico de exaltação da liberdade religiosa pelo Iluminismo representou um simulacro de universalização dessa prerrogativa, convenientemente aplicada apenas aos segmentos cristãos reconhecidos e validados pelo homem branco.
Em outras palavras, a tão aclamada liberdade religiosa iluminista é, em seu alicerce, cristocêntrica e racista.
No Brasil, não é diferente: o povo negro nunca experimentou igual liberdade religiosa. O Estado brasileiro, historicamente, figurou como agente decisivo na persecução das religiões afro-brasileiras, propagando os efeitos do racismo institucional também na esfera da religiosidade. O racismo religioso constitui-se como uma das graves interfaces do racismo à brasileira que assume caráter ubíquo e fluido, interseccionando-se com outros mecanismos de opressão; aglutinando sentimentos e manifestações de ódio contra os negros.
Os registros de intolerância religiosa multiplicaram-se nos últimos meses, sob velhas e novas vestes. Não fosse a persistente continuidade da prática do racismo religioso no Brasil, poderíamos até afirmar que a história se repete. Sim, porque revivemos o Quebra, quando organizações criminosas convertidas – sobretudo no Rio de Janeiro – depredam terreiros em nome de Deus. Ressuscitamos o xangô-rezado-baixo quando cerimônias afro-brasileiras são interrompidas pela polícia, com apreensão de atabaques; ou mesmo quando o Ministério Público – cuja missão constitucional é defender o regime democrático e, portanto, os direitos dos grupos minoritários – impõe, seletivamente, tratamento acústico de terreiros e restrições ao uso do mesmo instrumento sagrado. Não nos esqueçamos das expressões de ódio religioso nas redes sociais, que se reproduzem, freneticamente, como uma espécie de fanatismo digital. Tudo legitimado por um sistema político que se diz sem partido – mas com religião! – e cujo poder público instituído não se envergonha em proclamar que a solução para o País não será o Estado, mas a Igreja.
Nesse campo pecaminosamente fértil, é a intolerância e o racismo religiosos que se proliferam como um milagre da multiplicação às avessas. A expiação do pecado alheio e o sacrifício do diferente (intolerável) parecem convertidos em mandamentos sacralizados, em verdadeiras leis divinas, de cujas boas intenções até mesmo Deus duvida.
Se há prenúncio de ressurreição dos valores escravocratas, então, é sempre tempo de lembrar que “essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade” [1]. E se 2019 é o ano de sua regência, é sob o ferro da espada empunhada por Ogum – o orixá da guerra – que hão de (re)lampejar os novos caminhos de resistência do povo negro.
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Por Lívia Sant’Anna Vaz, mulher negra, mestra em Direito Público e promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia. Publicado originalmente por Carta Capital.
[1] Luis Gama em Primeiras Trovas Burlescas.