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Para moradores de rua, “a constante é o desrespeito, a insensibilidade e a desumanização da cidade”

via Correio da Cidadania*

O centro da cidade de São Paulo é um dos melhores termômetros para se sentir as carências e desigualdades sociais que vivemos. E nesta entrevista falamos com uma das figuras que mais estende a mão a sem tetos, imigrantes, viciados, dentre outras pessoas em situação de vulnerabilidade: Padre Júlio Lancellotti. Na conversa, conta a rotina de abandono e repressão policial pelas ruas da cidade e a pouca sensibilidade do poder público.

“São pessoas tratadas como lixo. Eles tiram tudo, intimidam e ameaçam. Eu mesmo já fui muito insultado e tratado de maneira vexatória. É a constante, o dia-a-dia, a forma como esse povo é tratado. Outro dia vi um homem na Praça 14 Bis que teve até a sua muleta retirada e jogada em um caminhão de lixo. A constante é: o desrespeito, a insensibilidade e a desumanização da cidade”, denunciou.

Apesar de se tratar de uma responsabilidade compartilhada por diversos entes, é óbvio que a maior expectativa quanto a um tratamento progressivo a tais pessoas recai sobre a figura do prefeito Fernando Haddad, cuja gestão chegou a lançar programa de reabilitação para dependentes químicos. No entanto, nada que no fim das contas conte com o entusiasmo de Padre Julio, que não se cansa de registrar a tradicional violência policial.

“Sempre colocam que é um ‘fato isolado’. Ou que ‘nós temos de identificar as pessoas’, que sabemos muito bem quem são. Muitas delas estão nas fotografias que colocamos nas redes sociais. E sempre ouvimos uma resposta burocrática, típica de quem não se importa com o sofrimento do mais fraco. Ele (Hadadd) vai passar e ficará marcado como a administração das ciclovias – e do higienismo, que continua como nas gestões anteriores”, criticou.

A entrevista completa com Padre Júlio, gravada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir:

Em primeiro lugar, como tem sido seu trabalho pelas ruas de São Paulo, em especial da região central, ao lado de trabalhadores informais, sem teto, imigrantes estrangeiros, dentre outras categorias pauperizadas?

Padre Júlio Lancelotti: Nossa missão está na Pastoral do Povo de Rua, da Arquidiocese de São Paulo, e o nosso trabalho é junto à população de rua que hoje já está em mais de 16 mil pessoas, pelas ruas da cidade e centros de acolhida. Buscamos articular todos os trabalhos que a Arquidiocese e várias entidades ligadas à Igreja Católica fazem, conviver com outros grupos autônomos, religiosos ou não, e principalmente conviver com a população que está pelas ruas, no sentido de ajudá-la e estar junto dela na defesa da vida e da dignidade humana. Tentamos organizar a relação entre ela e a cidade, de modo que tais pessoas sejam respeitadas e tenham uma vida digna.

O que pensa a respeito do trabalho e alguns programas da prefeitura de Haddad relacionados a pessoas em situação de vício em drogas e na rua? Melhorou alguma coisa de fato em relação a gestões anteriores?

Padre Júlio Lancellotti: A própria administração é uma máquina muito grande, portanto, não é homogênea. Tivemos muitos problemas com a subprefeitura, na sua ação chamada de “rapa”, que retira as coisas das pessoas. Há um processo de intimidação. As pessoas que estão pelas ruas da cidade são sistematicamente tratadas com uma violência desnecessária, de uma maneira muito cruel e humilhante pelo poder público, seja ele de qual viés e cor política for. Todos eles parecem muito semelhantes e agem de maneira muito truculenta com a população que está nessa situação.

Considera que a atual gestão municipal contribui com ideias de revitalização do centro com viés excludente?

Padre Júlio Lancellotti: Justamente, todos se caracterizam da mesma forma. Fazem do mesmo jeito, porque os interesses do capital e os interesses imobiliários são muito fortes e nenhum deles foge dessa pressão violenta. Assim, todos ficam muito semelhantes.

O que comenta do comportamento das polícias (PM e GCM) em relação a esses tipos de pessoas que habitam a cidade? E a postura da prefeitura em relação a isso?

Padre Júlio Lancellotti: Já até coloquei fotografias nas redes sociais mostrando os remédios no chão, os alimentos, as cobertas das pessoas jogadas na rua. São pessoas tratadas como lixo. Eles tiram tudo, intimidam e ameaçam. Eu mesmo já fui muito insultado e tratado de maneira vexatória. É a constante, o dia-a-dia, a forma como esse povo é tratado. São pessoas que não têm nada e o pouco que têm é retirado de maneira violenta, sendo tratadas com prepotência e de forma humilhante. São muito insultadas e a dignidade humana não é respeitada. Outro dia vi um homem na Praça 14 Bis que teve até a sua muleta retirada e jogada em um caminhão de lixo. A constante é: o desrespeito, a insensibilidade e a desumanização da cidade.

E a prefeitura chegou a se posicionar e tentar mediar a repressão militar?

Padre Júlio Lancellotti: Sempre colocam que é um “fato isolado”. Ou que “nós temos de identificar as pessoas”, que sabemos muito bem quem são. Muitas delas estão nas fotografias que colocamos nas redes sociais. E sempre ouvimos uma resposta burocrática, típica de quem não se importa com o sofrimento do mais fraco.

Estamos em um ano de crise econômica e com aumento de desemprego. Você já notou efeitos relacionados a isso nas ruas de São Paulo?

Padre Júlio Lancellotti: Acho que o contraste ainda é muito grande. O que se percebe é um contraste. Não acredito que a elite esteja perdendo seus privilégios. Ela está lutando para mantê-los. Os mais pobres é que estão cada vez piores.

Que políticas o senhor defende que sejam aplicadas nas áreas mais degradadas ou subaproveitadas do centro de São Paulo?

Padre Júlio Lancellotti: A participação das pessoas, inclusive as que vivem na rua, na busca e construção de respostas mais humanas para garantir o direito à cidade para todos.

Como acredita que ficará marcado o mandato de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo?

Padre Júlio Lancellotti: Ele vai passar e ficará marcado como a administração das ciclovias – e do higienismo, que continua como nas gestões anteriores.

Texto de Gabriel Brito publicado por Correio da Cidadania, 15/12/2015.

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