“A hierarquia salvadorenha, hoje, não está à altura de Romero. Durante 13 anos, tivemos até um arcebispo do Opus Dei. Mas simplesmente não há figuras episcopais desse porte. É o ‘legado’ das nomeações de João Paulo II e Bento XVI”, avalia o teólogo.
“Um símbolo da opção preferencial pelos pobres da Igreja até hoje.” É assim que o arcebispo de San Salvador, Óscar Romero (foto), é lembrado pelo teólogo Juan Hernández Pico e alguns setores da Igreja, 34 anos depois da sua morte. Assassinado por um atirador do exército salvadorenho em 24 de março de 1980, enquanto celebrava uma missa, Romero está entre os mártires da Igreja latino-americana moderna, que atuaram politicamente para combater as injustiças sociais do continente.
De acordo com Pico, Romero é lembrado em seu país de muitas maneiras, e nas paróquias populares é considerado “o maior santo”. Em outros setores católicos, entretanto, “sua figura é vista politicamente como nefasta”. O arcebispo salvadorenho ficou conhecido por denunciar as violações dos direitos humanos em El Salvador em suas homilias dominicais e por apoiar as vítimas da violência política durante a Guerra Civil de El Salvador.
El Salvador é o menor país da América Central em termos geográficos, um dos três países latino-americanos com menor crescimento econômico e enfrenta problemas sociais relacionados à violência e ao narcotráfico. Na última semana, o país elegeu o novo presidente, Salvador Sánchez Cerén, que já havia ocupado cargos do governo em outras ocasiões. Na avaliação de Pico, a eleição do ex-guerrilheiro demonstra que a população “conseguiu superar a ‘auréola’ guerreira que, em outras eleições, acompanhava os ex-comandantes guerrilheiros (Facundo Guardado e Shafic Jorge Handal perderam fortemente como candidatos a presidente em 1999 e em 2005)”. Cerén foi eleito com 50,11% dos votos, o que demonstra que “o país está dividido”, disse Juan Hernández Pico à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Para ele, “nenhum dos candidatos poderia governar sem uma aliança”. Essa eleição, portanto, “talvez seja a oportunidade para voltar ao espírito dos acordos de paz, recuperá-lo e propor um plano conjunto de nação. Não vai ser fácil superar os extremistas de ambos os partidos, sobretudo os direitistas da Aliança Republicana Nacionalista, que ainda cantam um hino que diz que ‘a liberdade é escrita com sangue’”.
Juan Hernández Pico é teólogo e professor da Universidade Centro-Americana (UCA). Dedica sua vida ao trabalho pastoral entre as comunidades pobres na Guatemala, Nicarágua e El Salvador, muitos dos quais sofreram a violência da guerra civil. Antes de lecionar na UCA, Pico viveu na paróquia de La Natividad, na Guatemala, onde desenvolvia um trabalho pastoral com as comunidades indígenas maias. É autor de várias obras, entre elas, O cristianismo vivo: reflexões teológicas da América Central.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Hoje, dia 24 de março, faz 34 anos do assassinato de Óscar Romero. Como ele é lembrado em El Salvador?
Juan Hernández Pico – Romero é lembrado de muitas maneiras. Em quase todas as paróquias populares, ele é o maior “santo”. Espera-se que o Papa Francisco o canonize. Há alguns setores católicos da alta classe em que a sua figura é vista politicamente como nefasta. Não devemos nos esquecer de que a Comissão da Verdade, que procede dos Acordos de Paz, assinalou o fundador do partido de direita Arena, o major Roberto D’Aubuisson, como autor intelectual do seu assassinato. Anualmente, no sábado anterior ao aniversário do assassinato, realiza-se uma peregrinação da Plaza del Salvador del Mundo, onde há uma estátua de Romero, até a Catedral, onde se celebra uma Eucaristia com a maior parte dos bispos do país e, depois, há uma vigília festiva. Neste governo, colocou-se um mural sobre Romero no aeroporto, e batizou-se com o nome de Romero a rodovia mais importante da cidade. Na Universidade Centro-Americana – UCA, conserva-se a sua memória estudando-se a sua teologia e o que ele significou para a Igreja e para o país. Jon Sobrino escreve muito sobre ele.
IHU On-Line – Qual o legado de Romero para a Igreja salvadorenha?
Juan Hernández Pico – O legado de Romero é a figura de um dos Padres da Igreja Latino-Americana moderna e, além disso, mártir à altura de Manuel Larraín, Samuel Ruiz, Helder Câmara, Angelelli, etc. A Hierarquia salvadorenha hoje não está à altura de Romero. Durante 13 anos, tivemos até um arcebispo do Opus Dei. Mas simplesmente não há figuras episcopais desse porte. É o “legado” das nomeações de João Paulo II e Bento XVI
IHU On-Line – As lutas de Romero ainda são atuais considerando o contexto social e político de El Salvador? Ainda há reflexos de sua luta na sociedade salvadorenha?
Juan Hernández Pico – Sem dúvida, Romero é um símbolo da opção preferencial pelos pobres da Igreja até hoje.
IHU On-Line – Como vê o anúncio da canonização de Romero? Como a Igreja salvadorenha recebe a notícia?
Juan Hernández Pico – Na Igreja salvadorenha, há uma pequena parte que desejaria que Romero nunca fosse canonizado. Há outra pequena parte que desejaria que ele fosse canonizado como confessor: “Um grande sacerdote destacado pelo seu magnífico desempenho sacerdotal”. A grande maioria espera a sua canonização como mártir, o mais rápido possível, e às vezes há decepção com o longo tempo de espera. Sabe-se que a Congregação da Fé há muito tempo aprovou a catolicidade de todos os seus escritos. Espera-se que Francisco mova a canonização de Romero com rapidez. Esse seria o sinal que o consagraria, assim como indicam outros sinais.
IHU On-Line – Pode nos dar um panorama da situação política e social de El Salvador entre os anos 1980, quando Romero foi assassinado, aos dias de hoje, 34 anos depois? O que mudou na sociedade salvadorenha ao longo desse tempo?
Juan Hernández Pico – Os acordos de paz assinados em 15 de janeiro de 1992, com o impulso recebido pelo martírio dos jesuítas da UCA, que tirou legitimidade de um triunfo militar das Forças Armadas, propiciaram 22 anos de democracia representativa bastante sensata. Desde que a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional – FMLN ganhou as eleições em 2009, conseguiu-se até uma Sala de lo Constitucional [câmara constitucional] (parte da Suprema Corte de Justiça) independente. O fato de que a FMLN vai repetir um mandato presidencial e com um líder guerrilheiro como candidato e presidente eleito diz algo sobre as possibilidades dessa democracia. No entanto, faltam mudanças econômicas sérias.
El Salvador é um dos três países latino-americanos com menor crescimento econômico anual médio, e a iniciativa privada e os grandes capitais investem preferencialmente (embora não unicamente) fora do país, na economia global. Ainda são muitos os salvadorenhos que precisam emigrar para encontrar trabalho, por exemplo.
IHU On-Line – Como ocorreu o debate eleitoral entre os dois principais candidatos à Presidência da República de El Salvador, Salvador Sánchez Cerén e Norman Quijano? Em que consistiam as propostas políticas de ambos e qual, na sua avaliação, é mais eficaz para governar El Salvador?
Juan Hernández Pico – Infelizmente, a campanha eleitoral não debateu projetos sérios de nação. A segurança monopolizou os debates. Sim, a campanha foi muito tranquila e cortês por parte dos candidatos da FMLN. Foi muito dura e, às vezes, criadora de ódio por parte dos candidatos da Arena.
IHU On-Line – Quem é o atual presidente de El Salvador, Salvador Sánchez Cerén?
Juan Hernández Pico – Salvador Sánchez Cerén é um homem de 69 anos, educador de profissão. Uniu-se no início dos anos 1970 às organizações guerrilheiras, depois de ter militado como professor sindicalista. Foi o comandante de uma das cinco organizações político-militares que se uniram para formar as Forças Populares de Libertação – FMLN. Foi vice-presidente da República durante o governo do presidente Funes e ministro da Educação, um dos dois ministros mais bem considerados nas pesquisas de opinião pública. É uma pessoa inteligente, gentil e também capaz de diálogo. Uma das coisas que essas eleições mostraram é que El Salvador conseguiu superar a “auréola” guerreira que, em outras eleições, acompanhava os ex-comandantes guerrilheiros (Facundo Guardado e Shafic Jorge Handal perderam fortemente como candidatos a presidente em 1999 e em 2005). Além disso, ele foi acompanhado como candidato a vice-presidente por alguém muito mais jovem, um prefeito no cargo, reeleito como prefeito em uma grande cidade por três vezes (ou seja, eleito quatro vezes).
IHU On-Line – Cerén foi eleito com 50,11% dos votos. Qual o significado dessa votação tão acirrada? A população estava muito dividida?
Juan Hernández Pico – O país está dividido. Nenhum dos candidatos poderia governar sem uma aliança. Talvez seja a oportunidade para voltar ao espírito dos acordos de paz, recuperá-lo e propor um plano conjunto de nação. Não vai ser fácil superar os extremistas de ambos os partidos, sobretudo os direitistas da Aliança Republicana Nacionalista, que ainda cantam um hino que diz que “a liberdade é escrita com sangue”.
IHU On-Line – O que são os Mara Salvatrucha e como eles têm atuado em El Salvador e na América Central? Por quais razões o grupo tem conseguido se manter desde os anos 1980?
Juan Hernández Pico – Essa pergunta é bastante complexa. Originalmente, as maras ou quadrilhas juvenis foram importadas das ruas de Los Angeles por jovens salvadorenhos deportados. Hoje, o que era um jogo violento provavelmente se tornou uma dependência do tráfico de drogas. O narcotráfico é muito mais perigoso do que as maras. Ainda mais quando tenta passar despercebido por trás da máscara das quadrilhas, às quais se atribui toda a violência. A violência é muito mais forte entre os narcotraficantes. E muito mais financiada, evidentemente. Enquanto não houver políticas de emprego sérias, não vai ser fácil começar a resolver o problema das quadrilhas. Eu acho que os problemas das favelas pode fazer com que vocês entendam melhor o que acontece aqui.
IHU On-Line – A que atribui a reeleição do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, em 2011?
Juan Hernández Pico – Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, conseguiram ter nas suas mãos todas as instituições do país. Eles dominam o Tribunal Superior Eleitoral e a Suprema Corte (inconstitucionalmente, eles mantêm em seus cargos juízes que já acabaram os seus períodos há anos); dominam a Assembleia Legislativa e por isso puderam mudar a Constituição; dominam a Polícia Nacional e acabam de mudar o código militar como ferramenta para dominar o Exército. Por outro lado, eles têm um voto duro que remonta à década revolucionária dos anos 1980 e agem com os pobres de forma populista, não os tirando estruturalmente da pobreza, mas mantendo-os dependentes das dádivas do Estado. Desfrutaram de mais de 3,5 bilhões de dólares, vindos do chavismo venezuelano e que não estiveram sujeitos a aparecer no orçamento, mas são administrados pela família presidencial. Eles estão construindo uma dinastia à la Somoza.
IHU On-Line – Quais são os principais dilemas sociais e políticos dos países da América Central?
Juan Hernández Pico – O principal problema da América Central é a sua fragmentação em “paisinhos”. Se se conseguisse a Integração Centro-Americana, seríamos o quinto grupo populacional da América Latina (depois do Brasil, México, Argentina e Colômbia). Junto com o Panamá, teríamos entre 43 e 44 milhões de habitantes. Mas assim temos seis grupos oligárquicos defendendo direitos de minorias, seis exércitos, seis polícias, 12 aduanas territoriais. Uma confusão. O fato de ser um corredor do narcotráfico aumenta os nossos problemas. E principalmente a posição geoestratégica de corredor de acesso à água da bacia amazônica, que não pode ser deixada nas mãos de qualquer um.
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Publicado originalmente por IHU Online.