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A origem evangélica e ativista do Dia das Mães

por Magali do Nascimento Cunha*

O trabalho social da metodista norte-americana Anna Reeves Jarvis inspirou a data comemorativa

O Dia das Mães está aí. Festa para uns, vazio para outros, lucro para comerciantes… mas vale recordar a origem da data que tem mais de cem anos.

Poucos sabem que a gênese nada tem a ver com a tradicional referência às “rainhas do lar” ou com a intensa venda de produtos e presentes.

O Dia das Mães foi criado devido à atuação de mulheres/mães cristãs em causas sociais. Foi uma evangélica metodista de West Virginia, Estados Unidos, a ativista social Anna Reeves Jarvis, mãe de doze filhos, que começou a articular eventos que reuniam mães em torno de demandas sociais.

Jarvis criou em 1858 os Clubes “Dias de Trabalho das Mães” que atuavam pela diminuição da mortalidade de crianças de famílias de trabalhadores. Anos depois, a ativista organizou o Dia da Amizade das Mães, para reunir famílias e vizinhos separados com a Guerra Civil dos EUA, e para ações solidárias com os feridos.

Depois da morte de Anna Jarvis, em 1905, uma de suas filhas, que tinha o mesmo nome, foi quem militou para a oficialização de um dia nacional das mães. Anna Jarvis filha queria honrar a memória da mãe ativista social com um ato pela paz e com isso prestar homenagem a todas as mães.

A campanha pelo Dia das Mães oficial começou com a realização de cultos, inicialmente na Igreja Metodista, depois em outras igrejas, no segundo domingo de maio. Isso se deu em anos seguidos e em cidades diferentes. Como houve grande adesão, o segundo domingo de maio foi instituído por lei nos EUA, em 1914, como Dia das Mães.

Transformado a cada ano em evento fortemente comercial, o sentido do Dia das Mães sonhado pela filha da cristã metodista atuante pelas causas sociais foi apagado rapidamente.

Em 1923, Jarvis até passou a militar contra a data que ela própria havia criado. Nos anos 1930 ela chegou a ser presa, acusada de perturbar a paz de um encontro grupo de Mães da Guerra Americana, ao protestar contra a comercialização de flores. Anna Jarvis não teve sucesso na recuperação do sentido do Dia das Mães: morreu em 1948, cega, pobre e sem filhos.

Mais de cem anos depois da primeira comemoração oficial do Dia das Mães, pode parecer vã qualquer nova campanha pela recuperação do seu sentido original. Não deixa, porém, de ser um bom exercício pensar na data de forma menos estereotipada e comercial. Não seria um meio de honrar mães, presentes e ausentes, destacar aquelas que, como a Anna Jarvis do passado, são ativistas na promoção da vida e da paz?

Em nossa história recente temos mães-inspiração para outras mães, para mulheres que não são mães e mesmo para homens. Mulheres destacadas como Lucinha Araújo, mãe do cantor Cazuza, vitimado pela AIDS, líder da Sociedade Viva Cazuza de apoio a portadores do vírus HIV. Também a estilista Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel, desaparecido nos porões ditadura no Brasil.

Zuzu Angel pagou o preço de sua incansável busca pela verdade e a justiça: perdeu a vida em um acidente de carro, evidentemente provocado pelas forças repressivas da ditadura.

Da mesma forma, há as Mães da Praça de Maio, que, há mais de 40 anos, se reúnem na praça em frente à sede do governo da Argentina, em Buenos Aires, para protestar por seus filhos desaparecidos durante a ditadura naquele país, numa luta incessante por verdade, justiça e memória pela vida.

Contudo há outras mulheres não tão visíveis, como as mães fundadoras da Associação Brasileira de Busca e Defesa à Criança Desaparecida, as Mães da Sé, em São Paulo. Estas vivem a dor da ausência de seus filhos, mas dela brota força para uma jornada na qual enfrentam o mercado da prostituição, o tráfico de seres humanos, grupos de extermínio.

Há outras anônimas, como as Mães de Acari, reconhecidas pela busca de justiça e contra a impunidade dos assassinos de seus filhos, os onze jovens (três meninas e oito rapazes) moradores do bairro de Acari, no Rio de Janeiro, desaparecidos, em 1990, depois de serem levados à força, de um sítio em Magé, por policiais militares e detetives da Polícia Civil.

Entre estas mães conhecemos o nome de Edméia da Silva Euzébio, 47 anos, assassinada em 1993, junto com a cunhada, Sheila Conceição, na Praça Onze, depois de ter conseguido informações que levariam à localização dos jovens desaparecidos. Nem o caso dos jovens nem o de Edméia foram julgados pelo Poder Judiciário até hoje, e as Mães de Acari seguem firmes na busca por justiça.

Nesta mesma busca se encontra agora Marinete da Silva, mãe da vereadora do Rio Marielle Franco, executada a tiros porque atuava contra essa violência sofrida por moradores das periferias da cidade.

Dona Marinete não perde a esperança de que a justiça seja feita, mas reconhece o que é cruel: “… Tem tanta gente que sofre mais… Não sou a primeira nem serei a última”.

Há muitas outras mães que poderíamos citar, mulheres para quem certamente se referem as palavras de Jesus de Nazaré registradas na Bíblia: “Todas as vezes que vocês fizeram estas coisas a um dos meus pequeninos, vocês fizeram para mim” (Mateus 25).

Em tempos em que grupos religiosos advogam a “defesa da família”, com base em moralismos e no controle de corpos, deixando em último plano a defesa da paz, da justiça e da vida para todas as famílias, este exercício de recuperação do sentido original do Dia das Mães poderia ser potencialmente transformador, não?

Texto de Magali do Nascimento Cunha, jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. Publicado por Carta Capital, 10/05/2018.

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