via IHU Online*
“Aprendendo pelas redes, pelas ruas, pelas músicas e poesias, pela insatisfação que crescia no peito, nossos adolescentes e jovens eclodiram como toupeiras, reivindicando seus direitos, e nada além disso: direitos humanos, de dignidade, de educação de qualidade, de respeito e convivência saudável”, escreve Rosemary Fernandes da Costa, educadora, teóloga, membro da SOTER, Professora da PUC-Rio, do Teresiano CAP/PUC e na Secretaria de Educação do RJ.
“Sabem que são viajantes e vão inventando o destino que é como eles, menino, e muda a todo instante. Sabem que são estudantes” (Chico César)
Muitas análises já foram realizadas desde as jornadas de junho de 2013. Eclodem em muitas partes do planeta, manifestações de cunho sociopolítico, com variações em suas demandas, formatos e linguagens, mas o importante é que surgem, reaparecem. Para aqueles que diagnosticavam uma cidadania adormecida, alienada, amortecida, as manifestações surpreendem e nos convocam a repensar os exercícios de cidadania locais e globais.
Eugenio Bucci, em entrevista concedida à IHU On-Line, em agosto de 2013, declara que, no mundo inteiro, “as manifestações trazem vertentes ideológicas, às vezes antagônicas: em alguns lugares elas surgiram contra ditaduras, em outros, surgiram contra regimes democraticamente eleitos, em alguns lugares se opuseram a governos de esquerda, em outros, a governos de direita. Então não há um denominador comum, uma categoria única em todos esses protestos. Eles se parecem muito na forma, mas são muito diversos nos conteúdos.”
Como professora há 43 anos, acompanhei dentro das salas de aula do ensino médio e da universidade, processos diferenciados de formação da consciência cidadã, de distanciamento e de reconstruções progressivas. A concepção de cidadania transitava entre a teoria e a prática, contudo, com uma distância cada vez maior, me conduzindo à desesperança no que dizia respeito ao exercício concreto da ética pessoal e comunitária. A cada ano, procurava trazer novos subsídios que nos apoiassem no discernimento dos processos de subjetivação, mas também de alienação das subjetividades, e do isolamento na concepção equivocada de indivíduo: sem pertença, sem comunidade, sem envolvimento, sem compromisso e, portanto, sem consciência de comunidade humana universal.
Aos poucos, percebi o emergir de novas narrativas, que procuravam conjugar essa movimentação dialética e diagnosticar a necessidade da construção de novos cenários de exercício social, econômico e político. Algo parecia estar mudando nos processos de subjetivação e de construção comunitária, mas eu não identificava o que seria essa mudança. No dia 21 de junho de 2013, para surpresa minha, depois de uma experiência sofrida e cruel nas ruas do Rio de Janeiro, lá estavam eles, os jovens protagonistas, dentro da Universidade, às 7 horas da manhã, dizendo que precisavam conversar sobre o ocorrido naquela noite histórica. Machucados, sem dormir, feridos fisicamente e moralmente, precisavam de uma roda de conversa afetiva e de discernimento ético. Foi a minha primeira experiência sobre essa eclosão dos movimentos sociais, juvenis que, dali para frente, continuaram em sua construção coletiva de organização de pautas, agendas, estratégias, narrativas, dialogias, desconstruções, dificuldades e novas sínteses.
Neste novo momento histórico, dentre tantas lutas, estamos também diante da luta pela Educação em nosso país. Professores e funcionários das escolas públicas chegaram a um momento crítico diante de políticas de sucateamento das Escolas, de progressivo processo de desestruturação física, material, humana e filosófica dos processos pedagógicos. Exaustos, constrangidos e ameaçados pela própria necessidade de sobrevivência, muitos deixaram sua missão pedagógica, outros adoeceram, outros ainda se tornaram imobilizados e reprodutores das ordens vigentes. Mas também houve aqueles que permaneceram resistentes, em diálogo crítico, posicionando-se pessoal ou coletivamente frente às estruturas de desumanização no cotidiano de cada espaço escolar.
E aí, para nova surpresa de todos nós, eclodem os movimentos estudantis de Ocupação. Aprendendo pelas redes, pelas ruas, pelas músicas e poesias, pela insatisfação que crescia no peito, nossos adolescentes e jovens eclodiram como toupeiras, reivindicando seus direitos, e nada além disso: direitos humanos, de dignidade, de educação de qualidade, de respeito e convivência saudável. Por que toupeiras? Fazendo alusão ao esforço de um animal que vive quase todo o tempo no subterrâneo, cavando túneis e, surgindo onde menos se espera. Emir Sader apontava para esse emergir em seu trabalho em 2009, A nova Toupeira, no qual anunciava que, no início do século 21, uma nova toupeira eclodia das profundezas da terra. E onde? Na América Latina, subcontinente marcado recentemente por ditaduras e governos neoliberais.
Nessa emersão reivindicamos – professores, funcionários e estudantes -, a ética mínima. A ética dos mínimos de justiça, de vida digna, de condições inegociáveis e irrenunciáveis para todos e todas. A ética dos mínimos de justiça se orienta por uma moral ditada não por interesses particulares, sejam individuais ou grupais, mas por interesses universalizáveis. Aproximam-se nesse momento, mais uma vez, a teoria e a prática que andavam distanciadas.
Vejamos algumas declarações dos secundaristas que participam das Ocupações na cidade do Rio de Janeiro. Observemos o nível de consciência de cidadania local e global, a integração entre identidade e pertença, a construção de metas locais e de metas para além dos muros das escolas, a consciência de que esta é uma ação política relevante, histórica e transformadora.
Todos os nomes foram substituídos para resguardar as identidades dos jovens secundaristas.
1. Alberto, Colégio Estadual Central do Brasil – Estão sucateando as escolas e não vão parar. A Baixada Fluminense foi esquecida: ocupamos para dar voz aos que não tem voz. Adotamos a Filosofia Ubuntu. (Ubuntu é uma ética de origem africana que tem como eixo as alianças entre as pessoas, entre tudo que é vivo. Na língua portuguesa, poderíamos traduzir por ‘humanidade para com os outros’)
2. Renato, Colégio Estadual Amaro Cavalcanti – A educação é um ato político. A verticalidade não funciona.
3. Jorge, Colégio Estadual Herbert de Souza – Os estudantes mudaram. Antes estavam desinteressados, desanimados. Agora sentem amor pela escola e pelo estudo. Experimentaram outro olhar para o espaço.
4. André, Colégio Estadual Rangel Pestana – na Baixada Fluminense já vivemos esses problemas há cinco anos. Agora nos sentimos fortes e solidários para lutar por nossa escola. Quero ser professor, sou filho de professora e passei a vida vendo a luta da minha mãe que muito admiro e quero seguir.
5. Patrícia, Colégio Estadual Visconde de Cairu – Nossa escola já foi modelo, hoje está sucateada. Há a clara intenção do governo de privatizar a educação. O direito fundamental vai se tornar mercadoria. Durante esse tempo, os alunos mudaram: mais responsabilidade, compaixão, fortalecimento do movimento estudantil, menos individualistas, noção de coletivo, de exercício político. Ganhamos como pessoas.
As Ocupações são experiências fortes de transformação da própria subjetividade dos estudantes. A partir dessas experiências enfrentaram o cotidiano, a sobrevivência, a convivência, as discussões de pauta, a filosofia das Ocupações, a renovação pedagógica, a descoberta de temas pertinentes, a superação das dificuldades, a resistência. Enfim, vivenciaram a cada dia, a cada momento, com cada pessoa e com cada grupo, as questões fundamentais para todo ser humano: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou?
Há quem faça críticas contundentes à imaturidade dos jovens secundaristas. Contudo, o que desejamos ressaltar nesta reflexão é o fato mesmo de emergirem como cidadãos, capazes de reconstruir as bases dos direitos humanos e de lutarem juntos pela ética dos mínimos de justiça. E alertamos para o fato de que, em sua maioria, estão na faixa entre 15 e 18 anos.
Estes jovens estão em um novo momento de suas vidas. Todo o Brasil tem muito a aprender com essa atitude. Eles hoje resgatam sua compreensão de pessoas, de cidadãos. E mais: de cidadãos do mundo. Compreendemos a cidadania como exercício político local da comunidade civil, para conviver de forma organizada, digna e pacífica, com a garantia de um mínimo de valores para todos e para cada pessoa. E avançamos para uma segunda instância, na qual vislumbramos esse exercício em diálogo com a identidade de cada homem e de cada mulher, como membros da grande comunidade humana e sociocósmica. Nossos jovens estudantes do Ensino Médio estão integrando essas duas instâncias e, com isso, só podemos reconhecer sua legitimidade como cidadãos que participam do mesmo ethos, da grande morada humana, e resgatam os fundamentos da ética, buscando o agir local em vistas de uma dinâmica global.
Vale à pena ‘ouvirmos’ mais algumas declarações de nossos jovens:
1. Roberta, Colégio Estadual Chico Anysio – Não podemos aceitar o retorno aos anos obscuros de nosso país. Pensamos em todos, também nas outras escolas. A Ocupação é solidária.
2. Maurício, Instituto Superior de Educação – Nosso colégio tem filosofia de Paulo Freire e de Anísio Teixeira. É o que aprendemos e estamos vivendo. Não esperávamos que a ocupação gerasse tantas mudanças.
3. Geraldo, Escola de Teatro Martins Pena – Estamos diante do descaso com a educação pública de qualidade, e esta é garantida na Constituição. A falta de pagamento dos funcionários terceirizados já é privatização e trabalho quase escravo. Não podemos deixar isso acontecer.
4. Maria, Colégio Estadual Souza Aguiar – O que somos e o que queremos ser? Acho que somos frutos das jornadas de 2013. Convido vocês a refletirem sobre gestão democrática.
Podemos perceber os valores subjacentes a cada declaração. As narrativas falam de identidade, de valor próprio, de dignidade, de fraternidade, de solidariedade, de recusa à instrumentalização e à escravidão, de direitos humanos. Como diz Adela Cortina, filósofa e professora em Valencia: “A pessoa é absolutamente valiosa, e isso significa que ninguém está autorizado a tratar os outros ou a si mesmo como meios para quaisquer fins, que ninguém está autorizado a instrumentalizar os seres humanos, utilizando-os exclusivamente como meios para seus propósitos”. Daí a relevância de suas exigências, a recusa da manutenção das manipulações e ideologias que estão desrespeitando a educação pública.
Observamos também o caráter relacional dessa experiência. Ao contrário do individualismo arraigado nos espaços sociais, esses jovens puderam vivenciar o dinamismo relacional com todos os seus desafios e possibilidades. Experimentaram as próprias limitações, a negação do individualismo, a corresponsabilidade. A proximidade moral é um campo novo para quem está acostumado a se perceber de forma solitária. Diante dos desafios cotidianos tantas vezes nos sentimos distanciados, isolados, separados por abismos que não sabemos como transpor. Ao nos olharmos frente a frente, ou mesmo lado a lado por uma mesma causa, somos interpelados a construir pontes: pontes de linguagem, pontes corporais, pontes étnicas, pontes religiosas, pontes políticas, pontes econômicas.
Quanta aprendizagem! Quanta sabedoria vivida! Agora somos mais que testemunhas dessa eclosão social e política. Somos convocados à parceria solidária, ao exercício coletivo da cidadania, a aprendermos juntos novas formas de construção desse mundo que tanto desejamos, e que somos capazes de conquistar. Estamos mais próximos, nos reconhecendo parceiros e aprendizes.
Concluímos com uma última declaração, do jovem Ricardo, do Colégio Estadual Juscelino Kubitscheck – “Enquanto tivermos fôlego vamos lutar. Vamos prosseguir. Não somos vagabundos. Sabemos muito bem o que queremos. Todo esforço vai valer à pena. A ocupação é pra mostrar que alunos também tem voz . Serve para incluir, numa sociedade que tentou nos excluir. Somos resistentes e insistentes. É próprio da juventude.”
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IHU Online.