A criação de uma nova agenda de desenvolvimento para os próximos 15 anos, representada pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), precisa ser devidamente reconhecida. Aqueles que estão familiarizados com os processos multilaterais sabem do desafio de construir por meio de consenso uma agenda dessa importância no âmbito das Nações Unidas. Contudo, as negociações que levaram países ricos e em desenvolvimento a concordarem sobre uma agenda que resume os desafios civilizatórios das próximas décadas fazem crescer expectativas quanto a sua real consecução.
O panorama complexo que aglutina crise econômica e financeira, crise climática e uma crise humanitária derivada de migrações forçadas, fragiliza as capacidades políticas de resposta. No entanto, reforça a urgência e a importância dessa nova agenda, tornando fundamentais uma avaliação dos aprendizados deixados pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e um olhar atento para os arranjos institucionais e os meios de implementação necessários.
As perspectivas conjunturais que se projetam logo à frente traduzem a complexidade dos esforços requeridos. Diversas fontes indicam aumento da taxa de concentração de renda mundial.
Estudo do banco Credit Suisse, publicado neste ano, por exemplo, aponta que a metade da riqueza do planeta está nas mãos de 1% da população. Por outro lado, um relatório sobre água e energia, publicado pela Unesco em 2014, relata que 768 milhões de pessoas ainda não têm acesso à água tratada, outras 2,5 bilhões vivem em condições sanitárias ruins ou péssimas e 1,3 bilhão de pessoas não têm acesso à eletricidade.
Em 2030, com a projeção do aumento da população das áreas urbanas e a crescente demanda das classes médias, serão necessários 50% mais energia, 40% mais água e 35% mais alimento, se comparado com a oferta disponível atualmente. Uma população mundial estimada então em 8,3 bilhões de pessoas pressionará cada vez mais por recursos como terra e água, essenciais à produção de alimentos.
Este crescimento populacional, associado a um quadro de mudanças climáticas, poderia resultar em escassez de alimentos, água e energia em todo o mundo. São essas algumas das constatações da publicação sobre grandes tendências mundiais reunidas pelo Ipea e lançada neste ano.
Avaliando estes cenários é compreensível, portanto, que o acordo multilateral que deu origem aos ODS assuma tal abrangência. Suas metas articulam dimensões que vão do enfrentamento da pobreza, passando por temas como transparência pública, agricultura sustentável, gestão de recursos naturais, novos modelos de produção e consumo, direitos das mulheres, qualidade dos serviços de educação e saúde, até geração de energia e construção de cidades mais inclusivas.
Mesmo assim, o tratado tem o mérito de reafirmar pactos que remontam mais de 40 anos de acordos internacionais abordando compromissos com democracia, direitos humanos, desenvolvimento como fenômeno multidimensional, além do combate à pobreza e à desigualdade. Nesse sentido, reforça trajetórias e pauta o futuro com uma agenda que trata dos principais problemas civilizatórios atuais.
Deste modo, reconhecendo as limitações próprias aos acordos internacionais e a característica incremental das políticas públicas, parece sensato e responsável propor que a nova agenda dos ODS seja abraçada por nós como uma boa oportunidade para deflagrar ações políticas que levem à melhoria das condições de vida da população respeitando os limites planetários.
Mas, o que ela tem a dizer ao Brasil?
Em um cenário de retrocesso da agenda de direitos, acompanhado de polarização política, os ODS apontam caminhos e se apresentam como uma agenda estruturante e articulada. Organizam o debate permitindo diálogos entre distintos segmentos e atores sociais (governos, sociedade civil e setor privado), mas também entre diferentes forças políticas e níveis de governo.
As oportunidades precisam ser avaliadas e começam com o reconhecimento do significado que esta agenda pode assumir se adotada como referência para políticas locais ou para definição de investimentos, marco para atuação da sociedade civil, dos conselhos de políticas públicas e órgãos de controle ou como parâmetro para ações de responsabilidade social corporativa, para criação de novos modelos de negócio.
Aqui cabem alguns alertas importantes. A conjuntura mudou. Não estamos mais diante da mesma agenda de prioridades nacionais encontrada no início dos anos 2000, quando a gramática da política nacional se voltava para o combate à pobreza e para a produção de políticas básicas de alguma maneira relacionadas aos Objetivos do Milênio.
Passados 12 anos, mesmo diante dos bons resultados colhidos pelo Brasil em praticamente todas as metas, um exame mais atento levando em conta a desagregação de indicadores segundo grupos de população e por critérios regionais revelará desigualdades persistentes.
Outro aspecto notável para a memória dos ODM foi o baixo envolvimento dos governos locais. Estados e municípios fizeram muito pouco e se envolveram tardiamente – apenas em 2007 foram registradas as primeiras experiências de municipalização dos ODM. Por fim, prevaleceram experiências pontuais que se alinhavam aos objetivos, mas não perseguiam resultados, articulando ações consistentes com as metas e indicadores propostos.
Logo, novas políticas indutoras prevendo assistência técnica, recursos e descentralização de capacidades no território deverão estar entre os meios de implementação necessários à integração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável aos planos e políticas de Estados e Municípios.
Qualquer avaliação das oportunidades acima também precisa vir acompanhada do rigor e do senso crítico necessários para que os ODS não sejam esvaziados de seu sentido político original.
Sua força de comunicação e mobilização não pode se converter em alegoria na qual seus ícones passem a representar iniciativas pontuais, desvinculadas de qualquer compromisso com resultados estruturantes. Não podemos admitir sua instrumentalização.
Será necessário ainda qualificar a atuação da sociedade civil para que esta vá além da mobilização e do mero reconhecimento da agenda. As articulações precisam dialogar com o arcabouço institucional e com as políticas públicas, evitando a atomização.
Precisamos de muitas forças sociais engajadas, porém, os atores que as constituem devem estar conscientes do significado do “desenvolvimento sustentável” e compreender as ferramentas disponíveis, as soluções e recursos existentes e, principalmente, seu papel. Este tem sido o sentido do trabalho da Estratégia ODS, uma coalizão de organizações representando a sociedade civil, o setor privado e os governos locais, com o propósito de discutir e propor meios de implementação para os ODS que levem a resultados mais consistentes.
*Sergio Andrade é diretor executivo da Agenda Pública e da Escola de Políticas Públicas e escreveu a convite do GR-RI