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O sentido de urgência: a necessidade de se conversar sobre o HIV

Minha coluna hoje será ocupada por Ramon Nunes Mello, um jovem e talentoso poeta que no Dia Internacional da Luta Contra a Aids nos brindou com um belíssimo depoimento, que me emocionou por sua delicadeza e coragem. Com isso, louvo a atitude e bravura de jovens artistas e intelectuais que lutam contra o estigma da Aids num momento em que a juventude gay volta a figurar entre os mais infectados pelo vírus.

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Sou Ramon Nunes Mello, 31 anos, poeta, escritor e jornalista. Estou soropositivo. Reagente. Essa é a palavra que consta no resultado de um exame positivo de HIV, metáfora para um despertar da vida. Reagente. No mesmo sangue em que hospedo o vírus HIV, carrego (além de muitos sonhos) o senso de integridade e convicção de que a grande cura da AIDS é o combate ao preconceito.

O primeiro momento – a descoberta – é de desespero. Porque, embora não mais signifique sinônimo de morte, o imaginário em torno do HIV é repleto de sombras. Eu vou morrer? Não vou mais namorar? Como será minha vida agora? Tive de enfrentar meus medos e rever a minha forma de enxergar o mundo. Não foi nada fácil. Procurei amigos, familiares e conhecidos para me entender diante de uma nova dinâmica de vida. Por essas pessoas tenho imensa gratidão, pois fui acolhido com solidariedade e afeto.

Ciente do diagnóstico, passei a cuidar melhor de minha saúde física, mental e espiritual. Optei pela vida, positivo. Amigos queridos me apoiaram e me indicaram um excelente infectologista e pesquisador – Dr. Estevão Portela Nunes – fundamental no processo de enfrentamento dos meus próprios preconceitos. Passado um tempo, criei coragem e conversei com minha família, que tem sido amorosa como sempre. Todo esse caminho foi fundamental para que eu decidisse abrir a questão publicamente, e começasse a direcionar a minha vida para uma possível atuação com direitos humanos.

O que mudou? Inúmeras coisas, principalmente no que diz respeito ao amor próprio. A conexão com o que me fortalece se aprofundou: a linguagem literária como busca e forma de vida; a prática do yoga, da meditação e do silêncio com mais profundidade; o exercício da minha fé na comunhão com a natureza, através da ayahuasca – planta mestra, enteógeno, que ensina a valorizar o ouro das palavras e a ancorar a presença no corpo. Aceito o chamado, integro o medo, confio em minha transformação e agradeço a chegada de dias auspiciosos, em busca de amor, liberdade, humor, paz, alegria e solidariedade.

Após o susto, me encontro em outro momento, entendi a necessidade de se conversar sobre o HIV. Não há culpa ou vergonha, importante lembrar, embora os preconceitos cultivados em nossas sociedades ainda façam pensar o contrário. Vou continuar a me relacionar, transar, namorar e amar, com mais consciência. Amor não tem fim. Obviamente, desde o diagnóstico em 2012, além de usar preservativo, tomo diariamente antirretrovirais, o que tornou minha carga viral indetectável – fundamental para não propagar o vírus, ou seja, não contaminar o outro.

Mas, contar ou não contar? Esse é o grande dilema das pessoas que vivem com HIV. Tenho obrigação de falar sobre a minha sorologia com todos os meus eventuais parceiros? Não. Há responsabilidade com minha saúde e cuidado com as pessoas que se relacionam comigo. E, de acordo com legislação brasileira, quem está soropositivo tem o direito ao sigilo e ninguém pode expor a situação sorológica de uma pessoa. Provavelmente você já se relacionou afetivamente com alguém que vive com HIV, mas poucas vezes devem ter lhe contado do diagnóstico. O receio da rejeição e do preconceito provoca a necessidade de manter segredo. O maior problema da epidemia não é quem está soropositivo em tratamento, mas quem está “sorointerrogativo”, ou seja, desconhece a própria sorologia.

Respeito profundamente quem está soropositivo e opta pelo silêncio, diante do estigma e da discriminação, só quem lida diariamente com o HIV conhece as dificuldades. Mas faz parte da minha natureza, hoje mais do que nunca, viver de forma política. O silêncio seria outra sombra, uma forma de morrer sem lutar. É preciso acabar com o tabu, romper com a representação de que o HIV é igual à morte, e garantir ainda mais a cidadania de quem vive com o vírus. Compartilho publicamente o meu diagnóstico porque hoje tenho consciência de que a visibilidade em relação à vivência com o HIV pode modificar minha realidade e, quem sabe, colaborar com aqueles que passam pela mesma experiência.

Fui em busca de referências em livros, blogs e sites (a internet é uma grande aliada) sobre o assunto, para entender como eu deveria me posicionar. Descobri diversas pessoas corajosas, muitas delas anônimas, que formam uma rede de informação e conhecimento. Mas foi no grande sociólogo e escritor Herbert de Souza, o Betinho (1935 – 1997), fundador da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), que descobri um pensamento fundamental: “Tenho a convicção de que a AIDS, assim como tudo na vida, é um assunto político, e que a política da AIDS tem de ser construída em base à esperança e à coragem”. E fé na vida, eu acrescento.

Estou entre as 734 mil pessoas vivendo com HIV no Brasil (em todo o mundo, a estimativa é de 37 milhões), de acordo com o Ministério da Saúde. Esse vírus há três décadas se espalhou pelo planeta, infectou 60 milhões de pessoas, e causou mais de 30 milhões de mortes, inclusive alguns “irmãos de alma”, a quem admiro:  Henfil (1944 -1988), Lauro Corona (1957 -1989), Cazuza (1958 – 1990), Reinaldo Arenas (1943 – 1990), Nestor Pérlongher (1949 – 1992), Leonilson (1957 – 1993), Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), Renato Russo (1960 – 1996) e Al Berto (1948 – 1997).

É notório o progresso no combate a HIV/AIDS no Brasil, e no mundo, mas não quer dizer que a doença esteja sob controle. Mais de 150 mil brasileiros têm o vírus HIV e não sabem, pois não fazem o exame. Ou até fazem o exame, mas não buscam o resultado por medo de encarar a realidade. Há uma crise mundial, muito próxima de todos nós, que tem implicações sociais, culturais, econômicas e morais. O índice de contaminação cresce diariamente entre jovens héteros e gays, infelizmente vivemos uma epidemia crescente e a vulnerabilidade é igual para todos.

Hoje há tratamento, é verdade, o que diminui consideravelmente a mortalidade por AIDS desde sua descoberta em 1981. Afora os efeitos colaterais dos medicamentos, principalmente o preconceito (muitas vezes do próprio portador) – e não o vírus – destrói a autoestima, o afeto e a sexualidade. Temos de lembrar sempre para evitar mais sofrimento: o HIV atinge pessoas de diferentes camadas sociais, gêneros ou religiões, sem distinção.

O mundo precisa de mais solidariedade, nós precisamos de mais amor: pela cura do planeta. Pela força de mudança que se apresenta no mundo, fixo meu olhar no presente e declaro meu apoio aos cidadãos que lutam pelos Direitos Humanos e trabalham por um Brasil mais igualitário, por um futuro com mais SOLIDARIEDADE – “a grande vacina contra a AIDS”, como ensinou o escritor e ativista Herbert Daniel (1946-1992).

O HIV não mais significa uma sentença de morte. As pessoas que vivem com o HIV não estão doentes, convivem com o vírus. Palavras que impõem limites e mudanças profundas – HIV/AIDS – é necessário pronunciá-las e escrevê-las, só assim podemos criar um novo imaginário diferente do estigma associado ao início da epidemia. O fim é o meio. Ou o recomeço.

Com poesia termino essa carta (que comecei a escrever no ano em que descobri estar soropositivo), ingrediente necessário para afastar a morte e todos os seus fantasmas:

Diálogo com William S. Burroughs

ser
extraplanetário
eu sou o outro você

in lak'ech ala k’in
transformo
objeto em sujeito

a linguagem
o verdadeiro
vírus

 
* Por Ramon Nunes Mello, natural de Araruama (RJ) é autor de “Vinis Mofados” (Língua Geral, 2009), “Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile Editorial, 2011) e “Há um mar no fundo de cada sonho” – a ser lançado pela Verso Brasil Editora em 2016.

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