O evangelho deste domingo divide-se em três momentos:
1) Jesus “vê as multidões” (Mt 9.36-38), e o que ele vê o conduz ao segundo momento.
2) “Chama os discípulos”, e isso é mais do que uma mera convocação. É o surgimento de um movimento de dimensão universal, mas não fica só nisso.
3) Formado o corpo de discípulos vai ao terceiro momento (Mt 10.1-4). 3) “Envia-os” para a “ação” (Mt 10.5-8).
Meditemos, detidamente, sobre cada um desses três momentos.
1) Jesus “vê as multidões”
O que Jesus vê nas multidões? Elas estavam cansadas e desgarradas. Podemos inferir as multidões como toda a sociedade humana, e a ideia de desgarradas como a ausência de horizontes.
O filósofo argentino Jorge Angel Livraga costumava comparar a sociedade humana a um trem, com os vagões da elite e os vagões dos pobres, em que aqueles concentram os recursos, enquanto estes padecem necessidades extremas. De vez em quando, alguém se candidata a maquinista e precisa costurar relações com todos os vagões, já que depende do voto de todos para chegar à cabine de comando. Assim, vence aquele que conseguir a adesão dos vagões concentradores dos recursos e dos vagões dos miseráveis.
O grande problema desse trem é que todo mundo está tão mergulhado na complexidade do sistema social que envolve a existência dos vagões e os mecanismos de sobrevivência e de alternância de comando que poucos se perguntam: Qual o itinerário do trem? E se este trem estiver trilhando em rumo a um descarrilamento ou a um abismo?
A cada dia, torna-se mais evidente a falta de horizontes na sociedade humana. É da sociedade do capital a característica de aprisionar-se ao imediato, à pressa, às pequenas questões do cotidiano em detrimento de um horizonte de eternidade, mal planejamos o próximo século. Como dizia Saramago, “somos todos cegos”, “não sabemos para onde a História está nos levando”. Isso nos traz angústias, pois em algum lugar dentro de nós há uma intuição de eternidade, há uma sensação de imortalidade em choque constante com um jeito de viver que se limita ao superficial, preso a um sistema econômico externo e imperativo.
O movimento de Jesus nasce dessa tomada de consciência, de que a humanidade está “cansada” e “desgarrada” ou perdida, sem horizontes.
2) Jesus “chama os discípulos”
Este é o segundo momento do texto: diante de uma humanidade perdida, Jesus inicia um movimento, a partir da formação de uma escola de discípulos. O ponto de partida é uma sociedade humana desgarrada, o alcance é universal e a missão é uma libertação integral da humanidade.
Em que consiste esta libertação? Se você analisar o nono capítulo desde o início, vai perceber que o texto narra uma sequência de milagres, cura de um paralítico, ressurreição de uma menina morta, cura da mulher do fluxo de sangue, cura de dois cegos e cura de um mudo endemoninhado. Em seguida Jesus olha para as multidões “cansadas” e “desgarradas” e passa a chamar os discípulos para a missão.
Essa sequência de fenômenos aponta as limitações da humanidade e a necessidade de superá-las. A paraplegia representa a inação, a apatia da humanidade diante do curso que a História está tomando. A menina morta, que não está morta, mas dorme, representa o sono da humanidade mesmo diante de toda a conjuntura adversa que nos cerca. A doença do fluxo de sangue, talvez, diga-nos que precisamos curar a doença social que suga nossas energias ininterruptamente, transformando-nos em seres débeis, presos a zonas de conforto. A cegueira representa nossa falta de percepção quanto a que altura da História nos encontramos e para onde estamos indo. A mudez diz respeito às nossas omissões, nossa falta de alcance para o contexto atual, e a possessão demoníaca aponta para a falta de posse de nós mesmos, deixando que nossa existência seja ditada por forças externas, por tendências de mercados, por necessidades artificiais criadas para manter a engrenagem funcionando.
A escola de discípulos de Jesus é formada por pessoas simples, que carregam em suas histórias de vida as mesmas contradições dessa sociedade doentia, mas que vão se curando na caminhada a partir de uma pedagogia de mestre e discípulo, agindo no mundo como o sal da terra.
3) Jesus os “envia para a ação”
Por fim, Jesus, em um terceiro momento do texto, envia seus discípulos ao mundo. A escola não é apenas um espaço de formação, é uma escola de ação que se traduz em um movimento para fora. Os discípulos são lançados à missão. Nesse ponto do texto começam a aparecer verbos no imperativo: “ide”, “pregai”, “curai”, “limpai os leprosos”, “ressuscitai os mortos”, “expulsai demônios”, “não possuais ouro”.
Nisso consiste o movimento de Jesus em nosso tempo. “Ide” significa não continuar no mesmo lugar, é preciso se deslocar em direção à libertação da humanidade. Esse imperativo não combina com a apatia, nem com a inação. “Pregai” significa proclamar em voz alta, tornar público, levar a mensagem ao mundo e às pessoas. Esse comando não combina com o silêncio, nem com o sussurro. É preciso falar, dizer, gritar, curar-se da mudez e curar a humanidade de sua mudez. “Limpai os leprosos” significa que é preciso abraçar pessoas excluídas pela sua condição de miséria social, abraçar os que vivem em cracolândias, os moradores de ruas, limpando-os dessa condição. “Ressuscitai os mortos” significa despertar a centelha de vida que há dentro de toda pessoa humana. “Expulsai demônios” aponta para a libertação de tudo que nos aprisiona dentro da caverna, condenando-os a desperdiçar toda a nossa existência com as ilusões. “Não possuais ouro” é o imperativo do desapego aos bens passageiros.
O evangelho de hoje é um convite a nos renovarmos na caminhada como discípulos de Jesus, reacendendo a chama que há dentro de nós e trazendo à existência os ideais primeiros que nortearam o movimento de Jesus no primeiro século.
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Fonte: Texto elaborado por Ismael S. Maciel, do CEBI-PE.