Por volta das 20h, no máximo às 20h30, a água do banheiro masculino localizado no primeiro andar do Instituto de Educação General Flores da Cunha acaba. A partir daí, o cheiro começa a ficar insuportável nos corredores. Este fato é tão rotineiro que as aulas de Biologia do 3º ano do turno da noite, que eram ministradas em uma sala em frente ao banheiro, foram transferidas para o segundo piso. O bebedor, que ficava ao lado, também foi afastado. “Não tinha condições de tomar água ali por causa do cheiro”, diz a estudante Mirela Mendes, 20 anos, estudante do 3º ano, acrescentando que o banheiro atualmente não tem papel higiênico, lixeira e conta como uma só pia.
Esse é o único banheiro masculino em funcionamento do Instituto de Educação, uma das escolas mais tradicionais de Porto Alegre. Para as mulheres, também há apenas um. Os outros estão interditados por problemas que variam entre rachaduras nas paredes, infiltrações e buracos no teto. Quando chove, quase não há diferença entre estar dentro ou fora da escola, dizem os alunos. O teto de um deles, inclusive, já caiu. A escola também sofre com rachaduras nas salas de aula, uma delas está interditada por causa no mofo, problemas no piso, vidros quebrados, entre outros.
Mas esta é apenas uma parte do que acontece no IE – e a parte a que estudantes aprenderam a se acostumar. Segundo os alunos, pior é a falta de segurança – pelo menos um aluno é assaltado por dia, diz Mirela – e o declínio da qualidade do ensino.
“Os professores não estão motivados para dar aula mais. Eles dão aula parcelada, digamos assim. A gente tem períodos reduzidos. A aula não tem qualidade, porque como é que um professor vai dar uma aula de qualidade pensando que todas as contas dele estão atrasadas?”, questiona a estudante.
Segundo ela, é visível a queda na qualidade do ensino nos últimos anos. “Esse colégio era um colégio padrão. Muitos alunos saiam daqui, não faziam cursinho e iam direto para a UFRGS, e hoje o ensino do Instituto de educação decaiu muito. Eu estudo aqui há 9 anos e percebo isso perfeitamente”, afirma a estudante. “A gente tem que lutar por um ensino de qualidade, esse é o motivo da nossa ocupação. Pelos professores, pelos alunos e pelos funcionários”, complementa.
O relato de Mirela, infelizmente, não é exceção. Em menor ou maior grau, situações como esta e piores se repetem na maioria das escolas estaduais do Rio Grande do Sul. Também para exigir melhorias nas condições básicas, é que estudantes já ocuparam mais de 100 colégios públicos pelo Estado nos últimos dez dias.
Influenciados pelo movimento estudantil de outras escolas, alunos do Instituto de Educação aprovaram na última quarta-feira (18) a ocupação do colégio. Desde então, eles iniciaram um grande mutirão para limpar vidros, banheiros e esfregar classes. “Já que a gente está aqui, vamos fazer um mutirão para deixar tudo limpo, porque a nossa escola está um lixo. Sujeira é o que não falta aqui dentro. A gente só não vai conseguir limpar os espaços que foram trancados pela direção”, diz Mirela, salientando que, ao contrário de outras instituições, no IE a direção está contra a ocupação e trancou a maior parte do prédio.
Seguindo exemplos de outras ocupações, os estudantes do IE organizaram um cronograma de atividades que, nos primeiros dias, contou com cine-debates, rodas de conversa sobre feminismo, oficinas de grafite, de pintura de camisetas, entre outras atividades.
“Estamos mostrando que não somos a geração da internet, como muitos dizem, a gente está fazendo história e está tentando mudar o nosso país”
“Se a gente não lutar por um país melhor, por uma educação de qualidade, quem vai? Se a gente não lutar pelos nossos mestres, quem vai?”, questiona Mirela. “Estamos mostrando que não somos a geração da internet, como muitos dizem, a gente está fazendo história e está tentando mudar o nosso País”.
A estudante ainda diz ter outro motivo para lutar pela educação: deseja ser professora de História. Para isso, além das aulas noturnas, pela manhã tem aulas em um cursinho preparatório para o curso de História da UFRGS, pagos com ajuda de seu trabalho como estagiária da Caixa Econômica Federal à tarde. “É tudo muito corrido. Agora, durante a ocupação, estou faltando o cursinho, estou chegando atrasada no serviço todos os dias, mas é por um bem maior”.
Meninas (mulheres) mandam nas ocupações
Mirela não é a única mulher na linha de frente de ocupações nas escolas do Estado. Pelo contrário, é frequente ver meninas na linha de frente, organizando doações, oficinas, fazendo a segurança, até enfrentando a polícia, se for preciso. É o caso do Colégio Estadual Protásio Alves. “Aqui a gente colocou os meninos na cozinha”, brinca Nathália Silveira, 17 anos, estudante do 3º ano.
Sua colega e xará de sobrenome, Gabriela, 16 anos, vê a preponderância da mulherada no movimento estudantil como uma consequência natural da luta que a juventude vem travando nos últimos anos. “As mulheres tiveram a oportunidade de mostrar a força delas aqui, nas ocupações, e na luta, porque lugar de mulher é na rua lutando. Na escola, ocupando. A gente está sempre lutando pelos nossos direitos, está sempre lutando pela nossa liberdade e essa força que a gente tem para lutar por isso a gente trouxe para a escola para lutar pelos direitos de todos”, afirma.
“Se a gente não lutar por um país melhor, por uma educação de qualidade, quem vai? Se a gente não lutar pelos nossos mestres, quem vai?”
“Eu acho que a gente conseguiu trazer um pouco do que é a mulher hoje, que não é obrigada a ser bela, recatada e do lar”, complementa Ana Paula Soares dos Antos, 18 anos, também do 3º ano e outra menina da linha de frente da ocupação na Protásio Alves. “Nos espaços da ocupação, a gente conseguiu uma equidade de gênero, em que não é a mulher que tem que estar na limpeza, não é a mulher que tem que estar cozinhando”.
O feminismo, aliás, é um tema que está sendo tratado nas atividades realizadas durante a ocupação, bem como a discussão sobre a ditadura militar, que terá um dia inteiro, a próxima terça (24), voltado para debatê-la. Com essas atividades, os estudantes querem mostrar que uma outra escola, não apenas preocupada em repetir eternamente o mesmo padrão de ensino, é possível.
“A crise na Educação no Brasil não é uma crise, é mais um projeto”
“A gente chega na sala, o professor toca qualquer coisa no quadro, faz a gente aprender Bháskara. Só que isso não é uma coisa que a gente vai levar para a vida. A gente precisa aprender a se tornar cidadãos, indivíduos. Então, a gente precisa debater sobre assuntos que não chegam na sala de aula, como relembrar o que foi a ditadura, falar sobre a opressão de gênero, falar sobre a opressão de classe”, afirma Nathália. “Esse é o interesse de politizar a escola, passar essa informação que o Estado tira da gente, porque é benefício para ele que a gente não tenha essa informação, que sejamos um bando de alienados. A gente quer mostrar o contrário, que precisa dessa informação e que precisa disseminá-la cada vez mais”.
As meninas do Protásio também querem mostrar, na ocupação, que é possível aprender de uma outra forma, de uma forma até mais divertida, unindo, por exemplo, arte e conteúdos que caem no Enem.
“Estamos tentando trazer um pouco de cultura para a escola, porque a gente não tem nada disso. O período de artes é só no primeiro ano e é uma arte que ‘ai, faz um desenhinho e entrega para o professor’. A gente acha que arte é música, é teatro, é grafite e está promovendo oficinas assim”, diz Ana Paula. “Tem pessoas aqui que gostam de música, que cantam, e por que a gente não traz isso para o nosso convívio? Por que a gente não pode ter uma aula diversificada, um cine-debate? Por que a gente não pode usar um espaço que é nosso? A gente quer trazer isso nas oficinas porque tem muita gente que sente essa dificuldade de não conseguir trazer o que gosta para dentro da escola e muitas vezes, quando tenta, é barrado”.
Para Gabriela, a sensação é que, desde o ensino básico, os alunos são tratados como robôs, sem espaço para pensar, tendo apenas que copiar no caderno o que está no quadro e repetir as mesma informações na hora da prova. “Não. A gente quer mostrar que com música da para aprender História, dá para aprender Literatura. Poesia, grafite, a gente quer levar a política a outros níveis aqui na escola, porque a gente não é levado a sério. Não se discute política realmente”, diz.
Para ouvir a voz dos estudantes
Bruno Serpe, 19 anos, do 1º ano da Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles, também estava cansado de não ser ouvido. Tímido, inicialmente disse que não sabia articular seus pensamentos, mas, com um pouco de paciência, o recado vem. “É que nem ali tá escrito: ‘o aluno tem voz’. Agora que o país está começando a ouvir a voz do aluno, porque, até uns meses atrás, a gente falava e reivindicava e estamos aqui do mesmo jeito”, diz. “A crise na Educação no Brasil não é uma crise, é mais um projeto”, complementa.
Em um sinal de que não vai aceitar mais ser calado e que não aceita que esse seja o destino de nenhum colega seu, nem no Estado nem em qualquer parte do Brasil, ele recolhia, na última quinta-feira (19), assinaturas para um abaixo assinado contra a chamada Lei da Mordaça, que veta o debate de temas como sexualidade, religião e política nas escolas do município de Campo Grande (MS). “A gente está fazendo um abaixo assinado para mandar para lá para ver se, pelo menos, consegue diminuir isso. Aqui, a gente pode pelo menos falar um pouco de política, sobre o que a gente gosta, o que a gente não gosta. A gente tem uma democracia”, afirma.
No entanto, isso também pode estar ameaçado, uma vez que projeto de lei semelhante, defendendo uma “Escola Sem Partido” no Estado, foi apresentado pelo deputado estadual Marcel Van Hattem (PP). Na verdade, com o avanço de políticas conservadoras pelo país, projetos semelhantes se espalham por diversos Estados. Diante disso, Bruno manda outra recado. “O Brasil não é deles, o Brasil é do povo. O mínimo que o povo tem direito é de dar opinião”, diz Bruno.
Ficar até quando for necessário
Após as primeiras escolas serem ocupadas no Estado, a Secretaria de Educação (Seduc) chegou a responder às reivindicações dos estudantes. Para o Colégio Estadual Coronel Afonso Emílio Massot, a primeira escola a ser ocupada, ainda no dia 11, foi liberada parte da verba de manutenção não repassada – algo que está atrasado desde o ano passado em muitas escolas e também faz parte da lista de reivindicações – e feita a promessa de que disciplinas sem professores teriam as vagas preenchidas. Com a explosão do movimento, porém, o governo, aos poucos, foi silenciando.
“O Brasil não é deles, o Brasil é do povo. O mínimo que o povo tem direito é de dar opinião”
Como a resposta padrão é a de que não há dinheiro nos cofres e que o Estado já gasta mais de 33% do que arrecada em educação, dificilmente todos os estudantes terão um retorno positivo. Mas isso não os desanima. “A gente espera conseguir uma educação melhor, uma infraestrutura melhor, para os professores poderem ter condições dignas de trabalho, porque aqui os professores não têm um apagador. Eles que fazem uma vaquinha para poder comprar caneta, apagador, essas coisas, porque o governo não libera verba”, diz Bruno.
E até quando os estudantes esperam permanecer nas ocupações? “Isso não deixa de ser um projeto de sociedade. No momento que a gente está aqui, tem que organizar comida para todo mundo, organizar segurança, organizar toda essa infra-estrutura, é um projeto de sociedade. Apesar de a gente ser bem novinhas, sermos todos secundaristas, a gente está tomando a linha de frente e tendo que organizar tudo. A ocupação é isso. É um ato de resistência, da gente mostrar que não estamos dormindo, que ocupação não é bagunça. A gente está aqui por algum motivo e só vamos sair daqui quando a gente conseguir o que estamos reivindicando”, diz Nathália, do Protásio Alves. “Para os secundaristas, é tudo ou nada”, complementa Gabriela.
Questionado se não se preocupa com o fato de que a ocupação poderá fazer com que eles precisem recuperar aulas no verão, Bruno, do Ernesto Dornelles, diz que esse não é o momento para pensar nisso. “Eu acho que agora a gente não tem que pensar se vamos estudar nas férias, porque o que está acontecendo aqui é muito mais importante que férias, curtição, essas coisas. O que está acontecendo é uma coisa que nunca mais vai acontecer. Isso aqui é uma coisa que vai ficar para a história. Alunos mandando na escola, é uma coisa que realmente está acontecendo. O aluno que está no comando de tudo”, afirma, deixando um último recado para os estudantes que ainda não aderiram às ocupações no Ernesto e em outras escolas. “Por favor, gente, todo mundo ajude a sua escola e façam o possível para melhorar, porque a educação é para a gente mesmo, é para o futuro”.
“Apesar de a gente ser bem novinhas, sermos todos secundaristas, a gente está tomando a linha de frente e tendo que organizar tudo”
Já para quem é contra o movimento estudantil, Mirela, do Instituto de Educação, deixa um convite: “Se as pessoas forem parar para ler, chegar aqui para conversar com a gente, para expormos as nossas opiniões e nossas críticas, elas vão ver que a ocupação é só para o bem. É para o bem de todo mundo”, diz. “O brasileiro se acomodou e hoje é muito mais fácil tu ir criticar o governo nas redes sociais do que tu ir à luta. Em vez de ficar atrás do meu celular discutindo e batendo-boca, eu prefiro lutar”.