via Diálogos do Sul*
Leia a nota sobre o ocorrido: CEBI repudia violência praticada pela Guarda Municipal de São Paulo contra pessoas em situação de rua
Religioso celebrou missa em homenagem a moradores de rua agredidos por guardas civis metropolitanos; prefeitura diz que está apurando os fatos
A fúria de Lampião, a coragem de Maria Bonita, o molejo de Luiz Gonzaga, a magia de Raul Seixas. José Orlando, 55 anos, carrega toda essa gente pelo corpo, como parte das 16 tatuagens que cobrem sua pele. Tinha posto na mente que todos eles iriam protegê-lo e lhe dar força quando precisasse.
Mas, na última sexta-feira (14/9), quando os homens e mulheres da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo passaram a espancar moradores de rua diante do Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, no Belenzinho, zona leste da cidade de São Paulo, as forças invocadas pelas tatuagens não lhe serviram de nada. “Cadê Lampião, cadê Maria Bonita, cadê Luiz Gonzaga, cadê Raul Seixas, cadê?”, pensou. Quando viu, Orlando estava caído na calçada, com a cabeça aberta por um golpe de cassetete.
Segundo os moradores de rua que frequentam o São Martinho, a violência começou como sempre começa, com o “rapa”, a apreensão de objetos da população de rua, que a Prefeitura prefere chamar de “trabalho de zeladoria rotineira”. Segundo a Secretaria Especial de Comunicação do prefeito Bruno Covas (PSDB), os GCMs davam suporte a uma equipe da Subprefeitura da Mooca que fazia o “rapa” e teria sido “hostilizada” por moradores de rua.
“Os guardas pegaram tudo. Meus documentos, minhas latinhas, minhas roupas. Eu fiquei sem nada”, conta Uelbert Sousa da Silva, 26 anos. Outras pessoas em situação de rua – ou “irmãos de rua”, como se chamam entre si – tomaram as dores de Uelbert e foram discutir com os guardas. Os GCMs, contam, resolveram ir para cima deles com golpes de cassetetes.
Foi aí que um dos golpes atingiu Orlando. “Eu estava em pé, esperando uma comida, os guardas me atropelaram com a viatura e me bateram”, diz. Por causa das marcas deixadas pelos cinco anos de vida na rua, Orlando parece ter mais do que os 55 anos de sua idade, a ponto de ser chamado de “velhinho” e “senhor” pelos parceiros de calçada. Daí que vê-lo sendo agredido fez a indignação se espalhar feito fogo entre os irmãos de rua.
“O cassetete cortou que nem uma faca, os guardas abriram a cabeça do senhor”, lembra um deles. “Aí nós tacamos pedras e rachamos a cabeça do polícia [guarda] também, porque ele rachou a cabeça do nosso irmão.”
Em meio ao sangue e aos gritos, os moradores de rua e os funcionários do São Martinho fizeram o que costumam fazer nessas horas. “Chama o padre.”
Chamaram Júlio Lancelotti, 69 anos, que é vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo e há 34 anos luta pelos direitos dos grupos marginalizados. É a quem a população de rua recorre quando o bicho pega.
“Chama o padre”. Chamaram. Pensavam que iria conseguir protegê-los.
Bofetões e cusparadas
Diante dos guardas civis municipais, contudo, padre Júlio pode fazer tanto quanto as tatuagens dos ídolos de Orlando. Os GCMs haviam chamado sua tropa de choque, a Inspetoria Regional de Operações Especiais( (Iope), e pretendiam invadir o abrigo para buscar um morador de rua, Diego Luiz Aleixo, 20 anos, que havia jogado a espuma de um extintor sobre os guardas durante a confusão.
“Quando eu cheguei, eles já estavam com escudos, taser, aquela escopeta 12, muito gás”, conta. Dessa vez, a presença do padre, e de tudo o que ele costuma representar, de autoridade religiosa ou de tradição de luta, não fez os guardas recuarem. “Eles me deram soco, me cuspiram, me xingaram de ‘padre de merda’”, conta.
A agressão ao padre que os moradores de rua vêem como seu defensor aumentou ainda mais a confusão. “Na hora em que puseram a mão no padre, a gente se revoltou”, lembra Uelbert.
Coordenador do São Martinho há 15 anos, Sandro Ricardo, 43 anos, foi conversar com os guardas para tentar mediar uma solução. A tropa de choque ameaçava invadir o local para capturar Diego, que havia jogado espuma de extintor nos guardas, e o coordenador queria buscar uma saída negociada. “Se tivessem aceitado conversar, a gente teria feito uma mediação. Se fosse comprovado que o menino havia feito alguma coisa, ele seria levado, mas de forma digna”, afirma.
Não teve chance. O único argumento usado pelos guardas foi um jato de spray de pimenta disparado diretamente nos olhos de Sandro. “Ardeu muito e perdi parte da consciência”, lembra.
Dentro do Núcleo de Convivência, os guardas invadiram todos os espaços, inclusive o banheiro das mulheres, e cometeram novas agressões, com gás lacrimogêneo e choques elétricos. Encontraram Diego e, conforme testemunhas, espancaram o jovem na frente de todos. “Ele foi muito torturado”, afirma o padre. Diego conta que, antes de levá-lo ao 6º DP (Cambuci), os guardas passaram primeiro no Parque da Mooca, nas imediações, onde o espancaram várias vezes. “Meu pulso foi deslocado”, diz.
O São Martinho tem história. Criado em 1990, com o nome de Centro Comunitário São Martinho de Lima, foi a primeira unidade de prestação de serviço à população de rua a assinar um convênio com a Prefeitura de São Paulo, numa época em que esse tipo de serviço era quase todo feito por entidades conveniadas ao governo estadual.
Em 28 anos de existência, o Núcleo de Convivência São Martinho nunca havia sido invadido, fosse por guardas, policiais ou qualquer outra força do Estado. “É algo que nos entristece muito, porque é um espaço que tem que ser respeitado. Muitos moradores veem aquele como um lugar seguro, o único espaço em que podem ser eles mesmos. Com a invasão, destruíram quase 30 anos de história em uma fração de segundos”, lamenta Sandro Ricardo.
Padre Júlio relata que, além de agredi-lo, um dos guardas também ameaçou prendê-lo: “Eu estendi os braços e falei: ‘Pode me prender, mas eu só saio daqui algemado, quero ver se você tem coragem’”. Não teve. Um colega de farda disse ao GCM: “Deixa o padre”. E foram embora.
Em nota, a Secretaria Especial da Comunicação do prefeito Bruno Covas (PSDB) afirma que o comando da Guarda Civil Metropolitana “determinou a imediata e rigorosa apuração dos fatos”. Diz a nota:
Segundo os guardas civis que estiveram no local, uma equipe da Subprefeitura da Mooca realizava trabalhos de zeladoria rotineira no local, quando foi hostilizada por moradores em situação de rua. Uma viatura da GCM que passava pelo local tentou impedir agressões, mas foi atacada com pedras, pedaços de pau e barras de ferro. Um guarda foi atingido por uma pedra e sofreu um corte na cabeça. Dois outros agentes tiveram lesões leves e uma viatura foi danificada. Um homem que participou das agressões foi apresentado no 6º DP (Cambuci). Cabe destacar ainda que a determinação da administração municipal é para que não sejam retirados pertences de moradores em situação de rua.
O Ministério Público de São Paulo instaurou inquérito para apurar as agressões ao padre e à população de rua.
Bella Ciao
Dois dias após as agressões, o padre Júlio celebrou, na manhã deste domingo (16/9), uma missa na Capela da Universidade São Judas Tadeu, na Mooca, em que denunciou os ataques à população de rua e celebrou a memória do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo-emérito de São Paulo e importante nome da luta pela democracia. Falecido em 2016, dom Paulo faria 97 anos no mesmo dia em que a GCM atacou o São Martinho.
“Não desviei o rosto de bofetões e cusparadas”, foram as palavras do Profeta Isaías lidas durante a primeira leitura da missa. Ainda machucados, moradores de rua que haviam sido agredidos pelos guardas participaram do culto. Diego trazia a mão enfaixada. Orlando levava uma ferida seca no alto da cabeça, embaixo do boné.
Uilbert comentou que, na sexta-feira, o “rapa” havia levado tudo o que tinha. “Eu estou vestindo roupa que foi doada pelos meus irmãos de rua para vir na missa hoje, que eu mesmo estou sem nada”, disse.
Padre Júlio homenageou os agredidos e pediu que contassem o que tinham sofrido. Na sua vez, diante do microfone, Orlando só conseguiu dizer: “Por que fazem isso com a gente? Se eu estou esmolando, eu estou pedindo, não estou roubando”. Ficou tonto e logo depois saiu da capela. Sentia-se mal. “Vou procurar um lugar para morrer”, disse.
Vários nomes ligados à luta pelos direitos humanos falaram ao longo da missa. Sinal dos tempos vividos hoje pelo país, com o crescimento das intenções de voto ao presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), inimigo declarado dos direitos humanos, muitos dos que falaram durante a celebração mencionaram sensações de impotência e receio do porvir.
“Eu me sinto muito emocionada e impotente. Nós temos que nos revoltar e dizer um basta. Eleição não resolve nada”, disse a deputada federal Luíza Erundina (Psol), que, como prefeita de São Paulo, em 1990, foi quem assinou o convênio pioneiro com o São Martinho de Lima. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, um dos fundadores do PT, também desabafou: “Sentimos impotência diante dos ventos que sopram hoje no País”.
Para o padre Júlio, tanto as agressões de sexta-feira como as ameaças que recebeu no início do ano têm relação com o clima vivido pelo Brasil. “A ascensão dessa direita raivosa está liberando os fantasmas na cabeça de muita gente”, disse. “As pessoas estão achando que podem fazer o que quiserem.”
Do lado de fora da capela, sentado numa escadaria da universidade, Orlando já se sentia melhor. Havia comido um sanduíche e um chocolate quente. “Eu estava há dois dias sem comer”, disse. Contou um pouco de sua história à Ponte. Nascido no Ceará, vivia em Paraguaçu Paulista, no interior de São Paulo, e trabalhou a vida todo como caminhoneiro. Dos bons.
“Pensa num cabra bom, com quase 30 anos de rodovia. Conhecia as rodovias como a palma da mão, tudo que é cidade que você procurar eu conheço. Agora, passar por essa situação, compadre, pensa como você fica revoltado. Tomando cacetada de GCM aí no meio da rua, chamando você de maloqueiro, de mendigo, sabendo que você tem mulheres e filhos espalhados pelo mundo. Pensa numa situação difícil, cara.”
Há cinco anos, após uma briga com a segunda esposa, deixou a família, os cinco filhos, e acabou indo parar na rua. Antes de partir, disse “Nessa casa eu não ponho mais os pés”, uma frase da qual se arrepende, e que fica martelando em sua cabeça nas noites enquanto dorme nas calçadas. Sua vida está presa num círculo: tem vontade de deixar as ruas e voltar para a família, mas ao mesmo tem vergonha de reencontrar os filhos por ter se tornado um morador de rua, e assim vai ficando.
Antes dormia no Parque da Mooca, mas deixou o local de lado porque, segundo ele, os GCMs passaram a espancar quem se recolhia ali. “Se pegam você deitado ali, te quebram na madeira”, contou. Ontem, deixou a capela antes do final da missa e contou que não sabia onde iria dormir naquela noite.
Ao lado dele, Adriano Casado, 45 anos, 9 deles vividos na rua, explicava que agressões como aquelas ocorridas na sexta-feira fazem parte da rotina dos irmãos de rua. “É uma coisa que acontece direto. Sofrer agressão da GCM, chamarem a gente de lixo, o rapa levar nossas cobertas, é normal. Como o padre estava envolvido, tomou uma dimensão maior”, disse.
Dentro da capela, padre Júlio encerrou a missa pedindo que os fiéis entregassem flores à população de rua presente. “Não queremos entregar para os irmãos de rua bomba, nem gás, nem balas, queremos entregar flores, para que a vida deles seja digna e humana”, conclamou o padre.
Enquanto as flores se espalhavam de mão em mão pela capela, o coral Martin Luther King cantava Bella Ciao, a canção italiano símbolo da resistência ao fascismo, entoando versos que celebravam a flor, aquela flor tão linda, nascida na sepultura dos que resistiram e morrendo lutando pela liberdade.
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Texto de Fausto Salvadori.
Foto de capa: Padre Júlio na missa com Diego e Uelbert | Foto: Daniel Arroyo/ Ponte Jornalismo