A comemoração dos 400 anos de Belém ficou marcada pela intolerância religiosa, na manhã do dia 19 de janeiro de 2016. A avenida Marechal Hermes foi o cenário de confronto entre a resistência das populações tradicionais de matriz africana e o fundamentalismo religioso de pessoas que se identificavam cristãs. Numa caminhada que surgiu com o propósito de celebrar a frente de resistência d@s afro-religios@s contra a violência durante o quarto centenário da cidade e denunciar o assassinato de sacerdotes e integrantes das comunidades de terreiro, tornou-se também um momento de evidência não apenas histórica, mas daquilo que essas comunidades cotidianamente ainda sofrem: o racismo religioso.
De um lado, cantos e saudações a orixás e caboclos anunciavam o início do ato, enquanto, também nos arredores, integrantes da Igreja Assembleia de Deus se organizavam para o abraço de oração e gratidão, marcado para 11h00 naquele mesmo dia e local. Entretanto, com a saída da marcha no sentido do Ver-o-Peso, o incômodo começou tomar conta de um conjunto de pessoas que, apostos para o evento seguinte, acabaram se antecipando de forma avessa ao seu propósito inicial.
“Queima Senhor” e “tá amarrado” foram algumas das palavras dirigidas aos participantes da caminhada, em tom de escárnio, desmoralização da manifestação pacífica e demonização da fé alheia, numa atitude contraditória a um ato que tinha em comum o direito a vida para todos (Evangelho de João 10,10) por pessoas que se intitulando cristãs, talvez tenham esquecido que um dia também foram perseguidas por professarem sua fé ou queiram voltar com a Lex Talionis (do latim, Lei do Talião), isto é, do “olho por olho, dente por dente”.
É comum a imprensa brasileira evidenciar conflitos/guerras no oriente médio com raiz nas intrigas religiosas, mas pouco ou nada noticiar sobre episódios como este no cenário brasileiro, reforçando não apenas a invisibilidade de uma tradição, mas de um crime conforme a lei 9.459 de 13 de maio de 1997. E em meio a todo esse silêncio midiático, se tem naturalizado a perseguição aos cultos afro-religiosos e seus adeptos, nas diversas nuances da violência.
Do lobby da bancada “evangélica” no legislativo federal à ausência das tradições de matriz africana no calendário oficial da Prefeitura de Belém, ao lado de outras religiões que também participam da construção dessa cidade, nos provoca a pensar que tais exclusões e seletividades não são fatos desconectados da conjuntura do país, mas refletem uma postura política adotada por alguns grupos da sociedade, assim como setores e instâncias do poder público. Por isso, precisamos ficar muito atent@s, sobretudo no limiar das eleições municipais, para que esse fundamentalismo articulado não alimente o ódio com/entre as religiões e culturas, fragmentando ainda mais nosso povo.
Por isso, na contramão de uma “santa intolerância”, vale destacar que há iniciativas que realmente promovem o diálogo ecumênico entre igrejas cristãs como o Conselho Amazônico de Igrejas Cristãs – CAIC, entre afro-religiosos como o Movimento Atitude Afro Pará e entre religiões diversas como o Comitê Inter-religioso do Estado do Pará – CIEPA precisam ser mais difusas e apoiadas. E mais do que isso, precisamos incorporar de forma pedagógica a postura da população tradicional de matriz africana presente na caminhada: seguir adiante com fé e resistência, abstraindo quando a coisa for menor que a causa, denunciando quando a vida for ameaçada e contribuindo com um outro mundo possível sempre e com muito axé!
* Por Eduardo da Amazônia