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História negra, escola branca

História negra
Os programas escolares brasileiros são racistas e o mito da “democracia racial” embaça os olhos da sociedade diante de conflitos étnicorraciais, afirma Amilcar Araujo Pereira.

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em História, ele lançou em 2013, em parceria com a colega Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, o livro Ensino de História e Culturas Afro-Brasileiras e Indígenas, pela editora Pallas.

Na obra, organizadores e articulistas debatem a efetiva aplicação das leis 10.639, de 2003, e 11.645, de 2009, que determinam a inclusão de história e cultura afro-brasileiras e indígenas nos programas pedagógicos das escolas do País.

Pereira, carioca de 35 anos, foi professor da rede municipal fluminense durante dois anos em Mangaratiba e já escreveu ou organizou outros dois livros sobre temas correlatos.

Ele identifica três razões principais para a disciplina ainda não integrar, de fato, o currículo: falta de materiais didáticos, poucas verbas governamentais para financiar pesquisa histórica e carência de docentes capacitados. Leia mais a seguir.

Carta Educação: O que motivou a organização de Ensino de História e Culturas Afro-Brasileiras e Indígenas?

Amilcar Pereira: A necessidade de produzir reflexão e conhecimento sobre esses assuntos. O livro foi resultado de um seminário nacional organizado na UFRJ, em 2010, por mim, pela professora Ana Maria Monteiro e por outros professores que formam o Lepeh, o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História da Faculdade de Educação da UFRJ. O livro é composto principalmente de artigos dos participantes desse evento. Esses temas têm pouquíssima produção até hoje em comparação com outros assuntos e historicamente estiveram ausentes da escola. Percebemos uma necessidade urgente para a sociedade brasileira: que todas as suas matrizes estejam presentes nos currículos escolares. É uma questão ética.

CE: Além dessa falta de material acadêmico, quais são os maiores obstáculos à aplicação das leis que preveem o ensino de cultura e história afro-brasileira e indígena?

AP: Hoje estou coordenando uma pesquisa sobre a implementação das leis em um grupo com 12 bolsistas na UFRJ. ­Entrevistamos professores e diretores em várias escolas no Rio de Janeiro, em Duque de Caxias e em Nova Iguaçu. Há vários entraves. Um obstáculo tradicionalmente mencionado é o da falta de material didático. Hoje há uma quantidade substancial de fundamentos para ajudar o trabalho dos docentes. Não dá pra dizer, como se falava há dez anos, que não existe material. Porém, ainda não é suficiente. Há muitas histórias relacionadas às populações negra e indígena que nós não conhecemos. Estudo essas questões há muitos anos e estou sempre descobrindo coisas novas, é impressionante! A liberação de recursos por governos, tanto o federal quanto os estaduais, para financiar pesquisas históricas sobre as culturas afro-brasileira e indígena também é um problema. Outra dificuldade é a pouca quantidade de pesquisadores com trajetória nessa área. Historicamente a cultura e a história afro-brasileira não foi um tema prestigiado na academia. Precisamos qualificar quadros.

CE: Há alguma raiz histórica para essa forma de preconceito escolar?

AP: No Brasil existe uma ideia há décadas, principalmente desde o governo Vargas, de democracia racial. Essa concepção de certa forma tornou invisíveis os conflitos evidentes. Determinou a celebração de uma formação que não contemplava, tanto nas escolas quanto no senso comum, as matrizes negras e indígenas que são formadoras da sociedade brasileira. Celebrava-se a miscigenação, mas só estudamos a história da Europa, como se isso fosse dar conta do conceito de formação nacional. Existe igualmente o preconceito racial e há também um componente religioso, principalmente evangélico e em particular nas grandes cidades. Tenho conversado com amigos que lecionam em São Paulo e eles dizem que lá é muito parecido com o que observo aqui no Rio: existe uma demonização do continente africano. Quando você trata de algo sobre a população negra, especialmente a africana, muitos alunos acham que é coisa do diabo. Nesse sentido, há professores evangélicos que não aceitam trabalhar a sistemática da lei, ainda que ela passe ao largo de incluir conteúdos religiosos. São muitos os desafios.

CE: É como se essa ideia de “democracia racial” tivesse anestesiado conflitos necessários para o debate?

AP: Não acho que o debate precise de conflitos, mas sim da compreensão de que eles existem e estão aí. É preciso ver a sociedade brasileira tendo em mente a desigualdade. Discutir as relações étnicorraciais em nosso país e compreender que elas são historicamente desiguais e que, sim, se reproduzem hoje. Evidentemente existe racismo na escola. E não é algo velado e sutil, como muita gente diz. Eu observei e observo, tanto enquanto fui professor na rede municipal quanto agora, nas falas de meus alunos, futuros professores de História que fazem estágios em escolas públicas. Qualquer professor já presenciou casos de racismo onde trabalha, desde xingamentos entre alunos até a forma como funcionários ou mesmo colegas lidam com as diferentes crianças e jovens, ainda que sem intenção. É fundamental transformar a escola e enfrentar essa ideia de democracia racial com viés embranquecedor. É um desafio muito grande. Não se trata apenas de inserir um ou outro conteúdo, mas de transformar todo o próprio ensino. Não é simples, não. Mas pode contribuir para a construção de uma prática docente pautada pela pluralidade cultural e pelo respeito às diferenças.

CE: Que exemplos o senhor mencionaria de casos em que a história dita oficial ignorou ou desvirtuou a participação de negros ou indígenas?

AP: Publiquei este ano minha tese de doutorado, chamada “O mundo negro”, sobre relações raciais e a constituição do movimento negro no Brasil. Para isso passei um ano em pesquisas nos EUA. Minha ideia era pesquisar relações entre o movimento negro brasileiro e o norte-americano. Ao chegar, tive uma surpresa fantástica. A Frente Negra Brasileira foi uma organização criada em São Paulo, em 1931. Eu já tinha ouvido falar dela e estudado bastante. Em 1936, ela tornou-se um partido político que aglutinava milhares de pessoas em todo o Brasil, com ramificações na Bahia e em Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul. Muito grande. Alguns historiadores falam em 30 a 40 mil associados. Chegou a ser recebida por presidente da República nos anos 1930 e teve algumas demandas atendidas. Em 1937 todos os partidos políticos foram fechados por Getúlio Vargas no golpe do Estado Novo. E a gente não conhece. Você já tinha ouvido falar?

CE: Confesso que não.

AP: Mas de Martin Luther King e Panteras Negras você já tinha ouvido falar?

CE: Com certeza. Vimos até no cinema…

AP: Nessas pesquisas, encontrei a Frente Negra Brasileira, em 1935, apresentada ao público americano pelos jornais da imprensa negra como a mais poderosa organização fundada e criada na sociedade brasileira. Esses veículos tinham grande circulação, alguns em âmbito nacional, e publicavam reportagens superelogiosas, citando até uma organização em Porto Rico inspirada no grupo brasileiro. Algumas me deixaram boquiaberto: a organização sendo exposta como um exemplo a ser seguido pelos negros norte-americanos na busca por direitos civis. Isso na década de 1930! Antes das lutas que conhecemos bem: Martin Luther King, Malcom-X, Panteras Negras e tal. Elas só deslanchariam na década de 1950.

CE: Há quem atribua ao racismo a demora da academia e do público em reconhecer o valor de autores negros, como Cruz e Sousa. Houve uma segregação pedagógica de cunho racista?

AP: Isso me parece evidente. É só olhar para o mercado de trabalho. Recebi há pouco uma pesquisa do instituto Ethos que mostra como o quadro executivo das 500 maiores empresas do Brasil é composto de 94% de gerentes, diretores e chefes brancos. Há uma sub-representação dessas populações na literatura, nas artes em geral e na política. Quando se olha para o Congresso ­Nacional isso fica evidente. Há também uma questão de gênero, pois (os líderes) são principalmente homens brancos.

CE: E no caso da história indígena os obstáculos são os mesmos?

AP: Acredito que tanto a população negra quanto a indígena sejam tornadas invisíveis nas escolas, tanto no currículo quanto nas práticas dos professores. Mas há uma diferença quantitativa muito grande, principalmente nas grandes cidades. A população negra é mais da metade do total, enquanto a indígena não chega a 1%. O racismo se manifesta mais diretamente com relação à população negra.

CE: Como políticas públicas influem na ausência de conteúdos afro-brasileiros e indígenas nos programas escolares?

AP: No Brasil a gente estuda mais história da Europa do que os franceses. Estive na França há um ano e meio e um amigo brasileiro que é professor de História em uma universidade francesa me levou para conversar com seus alunos. Os franceses estudam menos história da Europa do que nós. É absurdo. Lá eles estudam muito a história nacional, da França. Aqui, todas as histórias que a gente não conhece são reflexos dessas políticas, de opções feitas para dar visibilidade a um setor populacional: a população branca de origem europeia. Se você analisar os personagens históricos negros do século XIX, por exemplo, terá a impressão de que havia mais do que no século XX. Lima Barreto, André Rebouças, seu pai, Antônio Rebouças, conselheiro do Império. Após os projetos do início da República, a quantidade de negros proeminentes parece que diminui. O que é um contrassenso, pois a população negra vem aumentando a partir daí.

CE: Existe algum estado da federação ou alguma região do País que mereça particular destaque na aplicação dessas leis?

AP: Não tenho dados para responder objetivamente, mas posso dizer que há esforços nesse sentido em alguns estados antes mesmo de as leis federais existirem. A Bahia é um exemplo: já tinha legislação determinando o estudo de história e cultura afro-brasileira desde 1996, sete anos antes da Lei 10.639/03. Um histórico de vanguarda institucional.

CE: E com relação a eventuais diferenças pedagógicas entre as redes privada e pública?

AP: Na rede privada deve ser ainda mais difícil, porque as redes públicas recebem material, normativas, estão mais dispostas a ser interpeladas pelo Ministério Público. Esse controle social é mais difícil na rede privada.

CE: O fato de que precisamos de leis para evitar censuras pedagógicas de cunho racista evidencia que famílias, academia e sociedade falharam?

AP: Creio que não. Essa lei é fruto de demandas da própria sociedade, não é uma iniciativa do Estado. Podemos apontar os atores sociais que foram protagonistas da construção da lei: movimento negro, professores, intelectuais. Em pesquisas, encontrei a carta de princípios de 1978 do Movimento Negro Unificado, uma das organizações importantes que tivemos ainda no regime militar. Lá já havia uma reivindicação pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil. Antes disso, em 1931, a Frente Negra já tinha criado escolas para ensinar outra história à população negra. O texto da lei foi apresentado por uma organização a um deputado e se transformou em lei. Antes disso havia outras tentativas no Congresso de parlamentares negros como Abdias do Nascimento, Paulo Paim e Benedita da Silva.

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