A corrente teológica refuta uma interpretação fundamentalista da Bíblia e quer promover igualdade de gênero nas igrejas.
Quando Catiani Luna nasceu, não houve um anjo torto que vive nas sombras para condenar-lhe ao caminho errante da vida. Como quase toda criança brasileira, chorou, teve o cordão umbilical cortado, foi registrada em cartório e batizada na Igreja Católica.
Quando adolescente, conheceu o protestantismo através de um grupo de amigos. Foi ovelha desgarrada na juventude, mas voltou ao rebanho quando adulta. Como todo membro recém-chegado, estava empolgada para assumir funções na igreja. Gostava de cantar, tocar violão e queria liderar o louvor. Mas era mulher.
“Muitas pessoas não me consideravam apta a assumir determinadas funções só por ser mulher“, conta.
Natália Blanco cresceu na igreja. Quando criança, ia puxada pelos braços por sua mãe. Já adolescente, decidiu ir com as próprias pernas. Conheceu o feminismo dentro da igreja. Durante as aulas dominicais, não aprendia sobre dogmas ou preceitos bíblicos. Pelo contrário, era instigada a questionar o machismo e as opressões de gênero nas escrituras sagradas e na sociedade. O questionamento passou a ser parte de sua fé e fortaleceu sua relação com Deus.
- Recomendamos:
As mulheres e o patriarcado nas comunidades paulinas
As mulheres tomam a palavra
A história de Dina e de outras mulheres em Gn. 12-38
Mulheres – resistência e luta em defesa da vida
Catiani e Natália são parte das 23,5 milhões de evangélicas no Brasil, segundo o Censo Demográfico de 2010, e compõem 55% da população evangélica do País.
Elas pertencem à mesma denominação: o Metodismo, com origem no movimento de avivamento espiritual ocorrido na Inglaterra no século XVIII e liderado por John Wesley. Apesar disso, tiveram experiências completamente contrastantes em suas comunidades. Isto ocorreu porque a pastora da igreja que Natália resolveu viver prega um evangelho inclusivo e igualitário.
Para a pastora e mestre em Ciências da Religião, Lídia Maria de Lima:
“é preciso ressignificar os textos bíblicos à luz dos avanços sociais e dos avanços conquistados pelas mulheres“.
“As religiões são compostas por mulheres e lideradas por homens. Elas são maioria nos espaços religiosos, mas ainda não assumiram papéis importantes”, conta Lima.
Ela sentiu na pele o preconceito de que fala. É pastora, mas seu marido não. Durante sua trajetória, sofreu com a resistência de muitos membros em respeitá-la enquanto mulher e líder. Eles questionavam como uma mulher podia estar à frente de um ministério e inclusive de seu marido, o “cabeça da família“. “Fui contornando com muita elegância, mas às vezes cansa“, desabafa.
Lídia é, antes de tudo mulher, negra e periférica.
Para ela, é fundamental trazer para os estudos cristãos a realidade vivida por cada membro que compõe a igreja. Para isso, assumiu as aulas para jovens e adolescentes onde pastoreava, a Igreja Metodista da Vila Mariana, e incluiu gênero e raça em suas discussões.
“Eu cutucava e propunha leituras a respeito de temas sociais”, conta Lídia Maria de Lima, em entrevista ao HuffPost Brasil.
Nas reuniões, refletiu sobre discriminação racial, extermínio da juventude negra e de como os cristãos enxergam o racismo, a partir do desaparecimento do pedreiro Amarildo. Também organizou rodas de conversa para discutir violência contra a mulher. “A gente só consegue viver o evangelho se ele tocar as nossas vidas”, declara.
Para a pastora, o grande problema da igreja é que ela ainda não sabe o que é feminismo e atém-se a uma visão preconceituosa e equivocada do movimento. E essa realidade mudará somente por meio de um processo didático.
Em algumas igrejas evangélicas, mulheres podem ser ordenadas como pastoras e bispas. Quando uma mulher está na liderança, pode-se ter certeza de que ela lutou por esse espaço e sofreu “no corpo e na alma” as agruras de se afirmar em um ambiente desencorajador. A teóloga também defende que as pastoras precisam falar sobre empoderamento.
“É ingenuidade esperar que os pastores deem destaque para as mulheres da Bíblia, mas nós temos essa responsabilidade, precisamos ter sororidade nas igrejas. Somos irmãs e precisamos incluir as outras mulheres na caminhada”, explica.
O exemplo para esse comportamento está na própria Bíblia. As mulheres retratadas eram companheiras umas das outras. Um exemplo emblemático da sororidade escondida nas escrituras é a lealdade de Rute a sua sogra Noemi.
O que é a “teologia feminista”
Durante muitos séculos, se construiu a imagem do Deus masculino de pele e barba brancas. E a teologia feminista vem quebrá-la. Não se trata de transformar Deus em Deusa, mas de mostrar que esta figura que conhecemos é uma representação do imaginário.
“E quem criou esse imaginário foram homens. A figura masculina de Deus coloca os homens em posição de superioridade em relação às mulheres“, afirma Regina Jurkewicz, doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP.
A especialista ainda defende que Deus pode ser visto como uma figura diversificada. Alguns teólogos dizem que Deus está nas relações interpessoais, no senso de justiça ou na igualdade.
“Toda a história da igreja é marcada pelo pensamento patriarcal que deforma e manipula os fatos reais“, conclui.
De encontro a este pensamento, está a chamada “teologia feminista”. Ela é uma corrente de pensamento que propõe uma reflexão a respeito do papel e da visão da mulher na Bíblia. Ela prega uma interpretação sociológica das escrituras em detrimento de uma leitura literal e fundamentalista.
Jurkewicz explica:
“No cristianismo, se mistificou a visão da Bíblia como algo mágico, sem considerar o contexto histórico-social em que ela foi escrita. Existem relatos patriarcais porque se passou em uma realidade patriarcal. Mas a Bíblia não está aí para orientar a vida das pessoas hoje de forma literal, e sim para ser entendida como a história de um povo e de uma época, em que se vê as opressões de gênero como fruto da sociedade patriarcal da época e não como um ensinamento cristão a ser reproduzido.”
A Bíblia evangélica tem 66 livros. A católica, 73. Destes, apenas três são dedicados a mulheres: Rute, Ester e Judite (este presente apenas na versão católica). Apesar disso, mulheres aparecem em importantes papéis. As três Marias – Maria mãe de Cristo, Maria irmã de Marta e Maria Madalena – são alguns dos exemplos. A juíza Débora também.
Mais do que qualquer coisa, a teologia feminista prega a libertação de opressões. A própria figura de Cristo foi libertadora e transgressora. Apesar disso, na Igreja Católica as mulheres ainda não têm acesso nem ao saber nem ao sagrado, como explica Jurkewicz.
No campo do saber está o estudo da teologia, majoritariamente composto por homens. Já no campo do sagrado, está o acesso à ordenação e à celebração, dos quais as mulheres são completamente excluídas.
Só a pedagogia salva?
Iniciativas importantes têm sido tomadas para promover igualdade de gênero e tornar a religião menos hostil. Além de atividades individuais de pastores e pastoras em suas comunidades locais, existem entidades organizadas que travam uma luta diária.
O movimento dos padres casados, a ONG Católicas pelo direito de decidir, o grupo de evangélicas pela igualdade de gênero e as igrejas inclusivas reavivam a esperança em uma igreja sensível que combate opressões e se aproxima da figura do Cristo.
“Ficamos presos a dogmas e não conseguimos fazer uma leitura humanitária da Bíblia. Nos distanciamos do Jesus que caminhava, instruía e abraçava todos e todas e esquecemos que o princípio do Cristianismo é o amor ao próximo”, relembra Lídia.
Conheça os livros do CEBI sobre Teologia Feminista!
O processo histórico de interesses econômicos e de poder transformaram a igreja no que ela é majoritariamente hoje, mas não podemos nos esquecer de seu papel libertador, sobretudo na história do Brasil. Jurkewicz relembra:
“A partir da conferência nacional dos bispos, houve uma hierarquia no País que falava em nome dos pobres, que abria a boca na ditadura e abrigava presos políticos. E a igreja é tudo isso. A igreja é principalmente isso“.
–
Fonte: Texto de Thais Matos, publicado originalmente em Huffpost Brasil, 01/07/2017.