Não cremos em uma religião utilizada para a opressão, que contradiz o próprio exemplo de seu inspirador
Nos chamam heréticas. Vociferam pelas ruas, pelos templos, pelas redes sociais no intuito de nos vilipendiar. Mas não há nada que possa nos ofender em tal nominação.
Sim, somos heréticas! A heresia (airesis) como afirma a filósofa e teóloga Ivone Gebara, é a possibilidade de escolha, interpretação e questionamento do que se ensina como verdade, ou seja, do dogma (dokeo).
Nada mais apropriado para Católicas que lutam pelo Direito de Decidir das mulheres e para as teólogas feministas como Ivone que promovem uma outra interpretação e experiência da fé católica baseadas na liberdade. O mesmo poderíamos dizer de nossas amigas Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), protestantes históricas e tantas outras cristãs para as quais não existe uma incompatibilidade entre a sua fé e a defesa coerente de direitos.
A heresia é rejeitada pela hierarquia dogmática justamente por seu caráter desestabilizador dos pilares que a sustentam, o questionamento da “verdade” e da propriedade da fé.
Para os dogmáticos não existe interpretação, se auto proclamam conhecedores e proprietários da verdade.
Contudo, por mais que tentem impor seu discurso e sua concepção moral como verdades, o catolicismo é um espaço heterogêneo, permeado por conflitos e tensões resultantes das diferentes concepções a respeito de sua missão, da vivência da fé e do evangelho.
Hoje vivemos uma hegemonia do conservadorismo, ou neo fundamentalismo católico que por sua prática e discurso sustenta a injustiça, desigualdade, exploração e opressão. Por outro lado, temos experiências de fé absolutamente libertadoras que questionam as estruturas que geram esse estado de coisas.
É em comunhão com essas experiências libertadoras como das Comunidades Eclesiais de Base, das pastorais sociais, da Teologia da Libertação e da Teologia Feminista que temos a tranquilidade de nos afirmar como católicas, reivindicando o pertencimento a essa história que também nos constitui como pessoas.
Temos consciência e indignação de todo o mal causado pela instituição católica ao longo da história ao se impor como lei e tribunal que sentenciou tantas vidas à reclusão, silêncio, submissão e morte. Sua contribuição odiosa à empreitada colonizadora, a perseguição instituída aos “hereges”, as práticas de tortura física e moral.
Não é este catolicismo que reivindicamos, não há nada nele que possa ser defendido. Enquanto dogmáticos afirmam que as hierarquias e doutrinas são sagradas e inquestionáveis, para nós elas são produções humanas (masculinas), frutos de um tempo, de um lugar e de uma agenda política, que sustentam desigualdades e privilégios, portanto, não só podem, como devem ser questionadas e transformadas.
Sim, somos católicas! Não cremos em uma religião utilizada para a opressão, que contradiz o próprio exemplo de seu inspirador.
Cremos na comunidade como o valor principal do cristianismo; na experiência do Cristo encarnado e seu discipulado na sua luta contra a tirania política e religiosa. Cremos na capacidade ética e moral das mulheres assumirem a condução de suas próprias vidas e seus destinos; em sua autonomia reprodutiva. Cremos na capacidade das mulheres de interpretarem os evangelhos segundo seus conhecimentos teóricos e práticos. Cremos no direito de todas as pessoas vivenciarem sua sexualidade com liberdade e sem violência. Cremos na luta pela libertação contra o sistema contra o sistema capitalista, patriarcal e racista que nos divide, violenta e mata.
É esta crença que nos inspira e convoca a assumimos a luta pela vida, pela dignidade e pelo respeito à todas as pessoas, a luta contra as estruturas aprisionantes de qualquer ordem. Esta é nossa heresia e nosso jeito de ser católicas.
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Fonte: Texto de Gisele Pereira, historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir. Escreve às quartas-feiras para Carta Capital, 11/10/2017.
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