por Rebecca Maciel*
Acredito que antes de pensarmos sobre uma leitura feminista da Bíblia, devemos pensar em formas de que tal leitura faça diferença nos espaços em que estamos. Temos a sorte de viver em um momento de grande fluxo de informações sobre os mais diversos temas e, sem dúvida, a teologia não passa despercebida em meio a essa transformação. Muito facilmente encontrarmos canais no Youtube sobre Teologia, blogs, sites, grupos sobre conhecimentos teológicos e, mais especificamente, sobre Teologia Feminista.
Afinal, o feminismo está na boca do povo e a Teologia – que tem feito diálogo com esse movimento desde os anos de 1970 – precisou intensificar seus estudos na área. Seja apoiando ou seja refutando, informações sobre Teologia Feminista crescem. Um exemplo disso é uma pesquisa realizada em meu grupo de trabalho, a Mandrágora (Núcleo de Pesquisa de Gênero e Religião da Universidade Metodista de São Paulo), que realizou um mapeamento no final de 2016 sobre o número de trabalhos, seja na teologia ou na ciência da religião, sobre gênero.
Comparando as pesquisas desde a década de 1970 até agora, vemos um crescimento exponencial, de haver mais de cinquenta trabalhos acadêmicos a mais a cada ano nessa área. O que antes se encontrava em espaços pontuais, agora é de amplo acesso, de diversos grupos de pesquisas espalhados pelo Brasil.
Porém, o que mais me preocupa é que ainda assim não vemos uma mudança radical na relação da igreja com as mulheres. Do que adianta tantos blogs, pesquisas, vídeos se ainda chegamos a nossas igrejas nos sentindo sem poder, incapazes de realizarmos a revolução que sonhamos? Isso faz que muitas de nós retenhamos muita informação interessantíssima sobre Teologia Feminista, mas acabamos nos fechando, desesperançosas, em espaços que todos já acreditam na mesma forma que a gente.
Entendo que não seja fácil, pois eu mesma já passei e ainda passo por isso, mas a fé cristã é baseada na esperança e na crença que é possível mudar esse mundo. Se nós não tivermos esperança, ninguém terá por nós. Por isso, a decisão é de tornar o primeiro texto sobre como fazer a leitura crítica acessível.
As sugestões que eu trago são bastante pessoais, então não se trata de uma formula, mas de um conjunto de fatores que podem auxiliar.
Faça a igreja acreditar em você
Nesse caso, falo para as irmãs que estão dentro de uma igreja. Por mais que o movimento feminista negue isso, nós temos um espaço privilegiado para divulgar o movimento para fora do meio acadêmico. Porém, isso não significa que seja simples.
Um dos motivos pelos quais há uma verdadeira repulsa ao movimento feminista é esse grande estereótipo de que se trata de algo mundano, sem Deus, e você sabe muito bem que não é disso que se trata. Você, mulher feminista e cristã, existe. Contudo, como diria Jesus, não se acende uma vela para esconder. A igreja precisa conhecer para mudar sua percepção e, para isso, você precisa se arriscar.
Arriscar como? Às vezes de forma mais simples do que imaginamos. Às vezes o fato de você conviver com alguém diferente, ajudar em tarefas domésticas, ser simpática, espiritual, receptiva já ajuda as pessoas a quebrarem muitos preconceitos com esse demônio feminista que muitos acreditam. Isso é, mostre que quem você é e que não há motivo para temer aquilo que você fala. No momento que conseguimos conectar nossa humanidade e nossa espiritualidade, já temos um grande passo para falar nossas ideias.
Acostume a igreja a ouvir mulheres
Se você já possui algum espaço de influência na igreja, faça questão de chamar mulheres para falar. Podem ser mulheres não feministas, mas dê espaço para ouvirmos o timbre feminino durante o culto. Dependendo do espaço religioso que você viveu, como no meu caso, a espiritualidade feminina era colocada em segundo plano, como apenas a ser ditas em pequenos grupos. O fato destas poderem falar, dizer um pouco do que estudaram é um costume a ser estimulado.
Tivemos a oportunidade de chamar uma mulher negra para falar no dia da Consciência Negra, em minha igreja. Nesse dia, ela não quis falar sobre negritude, porém um salmo, como outro qualquer. Contudo, para as meninas negras em minha igreja sinto que este ato teve impacto, porque ali havia uma espiritualidade como a delas.
Esteja sempre estudando a Bíblia
Tive o prazer de conhecer uma excelente teóloga chamada Cheryl Anderson que realiza um trabalho sensacional em igrejas negras no sul dos Estados Unidos de conscientização de DSTs. Um trabalho ambicioso que aparentemente seria muito difícil de entrada para o debate. Porém, ela possui uma estratégia para sua militância: ela somente usa a Bíblia, mais nenhum livro. Graças a essa ideia, consegue viajar pelo mundo falando sobre aceitação ao sexo e as doenças sexuais com abertura nas mais diversas igrejas.
Como isso é possível? Muito, mas muito estudo. E a teóloga sempre pontua que, nas igrejas que ela atua nos Estados Unidos não haveria menor possibilidade de adentrar esses temas se não pela Bíblia. De forma similar, nossas igrejas têm maior abertura se conseguirmos trazer o feminismo para uma leitura bíblica.
Precisa de exemplo de uma mulher na liderança? Débora. Um exemplo de que mulheres não são loucas? Abigail. E tantas outras podemos citar. A Bíblia é sempre um mecanismo bom porque não se trata de um texto que pode ser classificado como mundano, herético e de “má fonte”.
Reforce a necessidade de saber interpretar um texto
A religião evangélica, apesar de possuir um número de leitores muito grande, também possui outro número gigantesco de analfabetos funcionais. O caso do homem que confundiu adúltera e adultera, famoso nos jornais, apenas expressa algo o que já sabemos: a Bíblia é mal lida.
Muitos são os motivos para isso, mas o motivo mais básico é que nosso ensino de português é muito deficitário e, por força do costume, acredita-se que a Bíblia não precisa ser lida dentro dos critérios de interpretação de texto. Perguntas básicas de “quando”, “onde”, “porquê” ou informações importantes como tipo literário e contexto histórico são comumente deixadas de lado para uma leitura anacrônica e dogmática. Estimule, sempre que possível, a contextualização. Sabendo já contextualizar o texto, ficará mais fácil identificar as estruturas de poder que estão relatas, as questões que já são ultrapassadas, se o texto é para ser uma lei ou não.
Encontre material que seu público irá ler
Saiba que as mulheres já são, hoje, as maiores leitoras do Brasil. E não somente isso, a literatura religiosa é a mais lida no Brasil (Souza, 2011). Desse modo, é muito provável que na sua igreja haja mulheres que conhecem e leem livros como Casamento Blindado, a Mulher V, dentre outros. Por mais que você ache O Segundo Sexo da Simone de Beauvoir um livro incrível, existe uma grande chance da pessoa que lê Casamento Blindado não se interessar por esse tipo de literatura. Procure livros acessíveis, menos teóricos e mais da prática. Se a pessoa gosta de receber vídeos pelo whatssap, procure um canal no Youtube ou se a pessoa gosta de filmes, indique dentro do gosto dela. Farei um post mais a frente sobre indicações feministas para todos os gostos.
Comece com temas que tem baixo índice de polêmica e aumente aos poucos
Feminismo é um termo com muitos estereótipos, termos próprios e demonização. No geral, para quem não gosta, há certa aversão a tudo que possa cheirar a feminista. Isso é completamente compreensível devida a nossa dificuldade de diálogo e principalmente a nossa insensibilidade com os diversos níveis de conhecimento sobre o assunto.
Nenhuma de nós nasceu sabendo o que empoderamento, mainsplanning, gaslighting, radical, interseccional, colorismo etc. Desse modo, vá devagar. Se você teve a oportunidade de falar sobre o tema, não destrua tua confiança logo de cara falando que feto não é gente. Converse com as mulheres e descubra quais temas elas estariam mais abertas a debater.
Em certa oportunidade, pude pregar na minha igreja e, em meio a pregação, citei um grande texto da Ivone Gebara. Eu poderia ter levantado um capítulo do O que é Teologia Feminista?, mas a fim de evitar polêmica e o termo, introduzi um texto mais amplo, sobre esperança e contextualizei como a atuação dela na teologia da época escrita foi revolucionária. Essa pequena citação abriu portas para pessoas procurarem, por conta própria sua teologia.
Num caso mais a frente, pode ocorrer outro exemplo vivido em minha comunidade. Realizamos uma sequência de estudos sobre mulheres na Bíblia. A grande maioria do material utilizado para a escola Bíblia era do Projeto Redomas e ressaltávamos o papel das mulheres como valorosos e pontuávamos temas como o da violência. Contudo, sempre foi preciso adaptar o linguajar e o índice de “modernidade”, pois havia muitos idosos dentro de sala. Por fim, todos adoraram esses estudos e comentam até hoje.
Falar tudo no poder do Espírito Santo
Parece um pouco bobo ou até mesmo crente demais, contudo quando tentamos passar uma ideologia para alguém sem o amor e a paz do Espírito Santo há uma enorme chance de sermos invasivas, desrespeitosas e orgulhosas. É Ele que nos faz lembrar que somos pó, um pó com um pouquinho mais de leitura que outros.
Então, assim que estiver se aproximando da Teologia Feminista, considere sempre formas de passar esse conhecimento a diante. Um teólogo que me afeiçoo muito, o Jurgen Moltmann, diz que a teologia acadêmica é um deserto. Ela não floresce em si mesma. Que façamos nossos estudos acessíveis para os outros.
Referências
SOUZA, Sandra Duarte de. O gênero escrito na literatura evangélica. In: OLIVEIRA, Pedro A. R. de; MORI, Geraldo de. (orgs.). RELIGIÃO E EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA. São Paulo: Paulinas; Belo Horizonte:SOTER, 2011, p. 113-128.
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Fonte: Artigo de Rebecca Maciel, psicóloga (UFRJ), teóloga (BENNETT), mestranda em ciências da religião (UMESP). Membra do Grupo de pesquisa em Gênero e Religião da UMESP (Mandrágora), do grupo de Feministas Cristãs (RJ) e da Igreja Cristã Carioca, e colunista do CEBI no projeto Voz Popular. Este texto foi publicado no blog da autora, Teologicamente Instável.