(Mateus 22,15-22)
Um plano bem armado: fazer Jesus cair na armadilha de suas próprias palavras! A cilada é introduzida por um elogio que é, ao mesmo tempo, reconhecimento de integridade:
“Mestre, sabemos que és verdadeiro, que ensinas o caminho de Deus… que não consideras as pessoas pela aparência…” (v. 16). Depois do elogio, a pergunta: “É lícito ou não pagar o imposto a César?“
Em caso de resposta afirmativa, toda a pregação de Jesus cairia por terra diante do povo. A ocupação romana era o que havia de mais explorador, a transferência de impostos para Roma era elemento provocador de miséria e fome. Além disso, do ponto de vista religioso, pagar o imposto significava aceitar o culto ao imperador. Na própria moeda romana, podia-se ler: Tibério César, Filho Divino do Venerável Augusto. Por isso, os fariseus e a maioria do povo se opunham ao pagamento.
Por outro lado, se Jesus responde que não se deve pagar o tributo, é apanhado em atitude aberta de afronta ao império. Os próprios herodianos, favoráveis ao pagamento do tributo e a serviço dos romanos, ali estavam para o flagrante.
A resposta de Jesus desmascara qualquer religião fetichista e legitimadora do sistema, seja a divulgada pela propaganda imperialista, seja a alimentada por autoridades judaicas (no texto, representadas por fariseus). É possível que Jesus tenha tocado no coração do sistema religioso romano: o lucro proveniente da cobrança do tributo imposta às províncias conquistadas por Roma. Ao questionar o caráter divino do imperador, todo culto a ele prestado (leia-se: submissão, oferenda e pagamento do tributo) está deslegitimado.
Mas também está desautorizada e ridicularizada a prática de boa parte das lideranças judaicas, que mantinham duplo comportamento. Desejavam a expulsão dos dominadores, ao mesmo tempo em que reproduziam a dominação ou usufruíam das benesses propiciadas pela ocupação, incluindo o sistema de cobrança do tributo: ainda que a maior parte dos impostos fosse repassada a Roma, as elites alimentavam seu luxo com o que retinham do montante arrecadado pelos malvistos cobradores de impostos, os publicanos. Se, por um lado, as autoridades judaicas negavam-se a oferecer incenso ao divino César, por outro, eram beneficiadas com tal divinização.
Pagar ou devolver?
O texto de Mateus, seguindo a versão de Marcos (Mc 12,13), coloca juntos fariseus e herodianos. A narrativa de Lucas opta por classificá-los: “espiões que se fingiam de justos” (cf. Lucas 20,20). O interessante é que enquanto os falsos justos perguntam se é lícito ou não “pagar” (em grego, é o verbo dídomi) o tributo a César, Jesus responde com outra concepção de justiça: usa o mesmo verbo, mas acrescentando um prefixo (apo) que dá uma ênfase diferente: não se trata de pagar, mas de devolver, como pode ser traduzido o termo apodídomi.
Se na moeda está a imagem (literalmente a epigrafe) do seu proprietário, o dinheiro pertence ao opressor romano e é preciso devolver a ele. Como gosta de afirmar Gustavo Gutierrez, “se na pergunta dos fariseus está implícita a possibilidade de não pagar o tributo, também está a de ficar, nesse caso, com o dinheiro”. Jesus supera o pretenso nacionalismo dos fariseus, vai à raiz:
“é preciso erradicar toda dependência do dinheiro. Não basta romper com o domínio político estrangeiro, é necessário romper a opressão que nasce do apego ao dinheiro e de suas possibilidades de exploração dos demais” (O Deus da vida. São Paulo: Loyola, 1990, p. 87-88).
Fazendo uso do imperativo, a comunidade de Mateus mantém enfática a resposta de Jesus: devolvam ao imperador o que lhe é devido; e, da mesma forma, a Deus o que é de Deus! No Sermão da Montanha, a comunidade já havia lembrado: Não se pode servir a dois senhores, não há como servir a Deus e ao dinheiro (Mateus 6,24). O culto a Deus não se coaduna com o culto a Mamon, aqui representado pelo sistema do império romano.
Mas o que é mesmo de César? E o que é de Deus?
Neste “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” ainda cabe a pergunta: o que mais é de César e o que é de Deus?
Em terra ocupada, toda a população sabia que além do denário, também era de César o procurador da Judeia, nomeado pelo próprio imperador. Eram de César os exércitos invasores com todo o seu aparato bélico. “A César o que é de César” inclui, portanto, todo o anseio de libertação. O clássico texto de Marcos 5,1-20 já tinha descrito, através da imagem dos porcos lançando-se ao mar, o mesmo desejo: a legião (termo militar para designar uma corporação de soldados) volta pelo caminho da onde veio, o mar (pelo Mediterrâneo chegavam os exércitos de César).
Da mesma forma que no Êxodo, o mar havia engolido os cavalos do faraó e a opressão do Egito foi vencida, a comunidade espera que os porcos do império sejam devolvidos ao mar. É o que pode também ser lido no “Devolvam a César o que é de César”.
Em contrapartida, o que mesmo é de Deus? Conforme Levítico 25,23, a terra pertence a Deus, o povo é nela hóspede. Logo, não pode a terra ser tomada por outra divindade, o império romano. Mas não somente a terra pertence a Deus. Também o povo, em última instância, é o “povo de Deus”, com ele Deus fez aliança (Josué 24). A liberdade do povo é dom de Deus. E ele não pode ser oprimido por nenhum outro poder, seja nacional ou estrangeiro.
Cumprir a sugestão de Jesus pode trazer-nos riscos
Há que se repetir que o processo de divinização de Jesus feito pelas comunidades é oposição implícita (ou até mesmo explícita) à divinização do imperador. Não o imperador, mas o profeta de Nazaré é o Filho de Deus. Isso nos permite afirmar que o movimento de Jesus, ou pelo menos a leitura que dele se fez na segunda metade do primeiro século, traz em si forte reação anti-imperialista. E se reconhecemos que a teologia romana era, de fato, o centro ideológico do poder imperial, seu coração teológico, devemos admitir também que a comunidade cristã entendeu que proclamar Jesus Cristo como filho de Deus significava deliberadamente negar a César o seu mais alto título. Também não é por acaso que a equipe missionária de Paulo foi acusada de alta traição ao “revolucionar o mundo, agindo contra o decreto de César ao afirmar que há outro rei, Jesus” (cf. Atos 17,6-7).
Consequências viriam… Não por menos, tantas lideranças tiveram a mesma sorte de Jesus. A essa altura, só restaria mesmo a um camponês de periferia, já considerado blasfemo pelas autoridades religiosas de seu povo (Marcos 14,60-64), ser condenado como malfeitor (Lucas 23,33-34). Como o próprio Jesus, as comunidades experimentariam que não é simples “devolver a César o que é de César”. O império não costuma aceitar.
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Fonte: Texto de Edmilson Schinelo, biblista popular e assessor do CEBI. Colaborou em publicações como Leitura Bíblica: a juventude mostra o caminho, Horizontes ainda que seja de noite e outras.