artigo de Donatella Di Cesare, via IHU Online*
“Os novos desobedientes são perigosos fora-da-lei, que deveriam ser condenados criminalmente, ou são cidadãos exemplares a cuja audácia se deve à vitalidade da democracia? Ameaçam a ordem pública ou permitem refrear o ódio pelo outro, o racismo, as discriminações, em nome de uma sociedade aberta? Assim pode ser sintetizado o dilema sobre o qual se concentrou, nos últimos anos, o debate filosófico, jurídico e político sobre o grande tema da desobediência civil”.
Não se dobrar às imposições da lei que se considera injusta é um ato de responsabilidade para com a própria consciência. Os exemplos de Antígona e Sócrates, a lição instrutiva do caso de Eichmann. Os novos desobedientes são perigosos fora-da-lei, que deveriam ser condenados criminalmente, ou são cidadãos exemplares a cuja audácia se deve à vitalidade da democracia? Ameaçam a ordem pública ou permitem refrear o ódio pelo outro, o racismo, as discriminações, em nome de uma sociedade aberta? Assim pode ser sintetizado o dilema sobre o qual se concentrou, nos últimos anos, o debate filosófico, jurídico e político sobre o grande tema da desobediência civil.
Um debate que passou gradualmente à ordem do dia também por causa de novas formas assumidas pela contestação social. Como em muitos outros casos, o ponto de virada foi determinado pela experiência totalitarista do século XX, quando a obediência zelosa do executor implacável apareceu em toda a sua monstruosidade. Sobretudo porque a razão, à qual se obedecia, não era mais aquela dos direitos universais, mas a fria e anônima racionalidade do cálculo impessoal. Diante dos inéditos “monstros da obediência”, como os chama Frédéric Gros no livro que agora chega às bancas Disobbedire (Desobedecer – em tradução livre -, da Einaudi), diante de Adolf Eichmann, o planejador logístico da Solução Final, que em 1961 proclamava no tribunal que ele tinha simplesmente seguido ordens, a questão se mostrava sob uma luz completamente diferente. Obedecer significa, no final das contas, não ter que prestar contas de nada a ninguém, nada pelo que responder. Resumindo: a responsabilidade aparecia em uma relação muito diferente com a obediência. Aquele que se submetia passivamente parecia totalmente desresponsabilizado. A “estupidez” de Eichmann, para citar Hannah Arendt, estava justamente na ausência de juízo, na repetição de clichês, no automatismo da palavra. Aqui está sua culpa efetiva: ter preferido não saber, não ver, não pensar. Se o que tinha acontecido pudesse repetir-se, quantos filhos de Eichmann teriam colocado em risco inclusive as democracias? A organização técnico-burocrática de vida, que segmentava a responsabilidade, tornando indiferentes e anestesiando, teria facilitado o trabalho de futuros cinzentos executores sem alma e sem piedade.
Aliás, já algumas décadas antes, em plena ditadura, a questão era mais a de obedecer. Assim escrevia Simone Weil: “A submissão dos muitos aos poucos, este dado fundamental em quase todas as organizações sociais, nunca deixou de espantar todos aqueles que refletem um pouco a seu respeito.” E, falando da Alemanha de Adolf Hitler, ela acrescentava: “Quando impera a morte, o milagre da obediência salta aos olhos. Que muitos se submetam a um só por medo de serem mortos já é estarrecedor; mas que eles se mostrem tão submissos, a ponto de morrer por sua ordem, como justificá-lo?”
Sob esse enfoque a desobediência revelava-se a escolha inalienável de liberdade que humaniza. Deve ser dito que já Kant, no banco dos réus pela rígida formalidade da sua ética, apesar de ter defendido firmemente o valor da obediência, sem a qual não existiria a comunidade, não havia deixado de solicitar a vigilância. A coragem do juízo crítico, até a dissidência civil, percorre e agita toda a tradição ocidental. A partir da figura emblemática de Antígona que, conscientemente, viola o decreto de Creonte, um édito miserável de politiqueiro oportunista, desprovido de qualquer legitimidade, que além disso choca-se contra as leis superiores, não escritas, como aquela sobre o enterro dos mortos. A comunidade contra o Estado, os direitos humanos contra os cínicos jogos de poder. E, portanto, desobediência. O grito do desafio: “Nasci para amar, não para odiar”. Um irmão é um irmão. A humanidade é uma imensa família. Antígona se recusa a operar divisões, discriminar aquele que lhe é mostrado como “inimigo”.
Mas é a filosofia que mantém alta a atenção sobre a desobediência. Como esquecer Sócrates? Acusado e condenado injustamente, ele renuncia a fugir, elogiando as leis da cidade; se tivesse fugido de Atenas, poderia ter sido acusado de traição. Mais ainda: teria feito o papel de um criminoso qualquer. Aceitar a sanção não significa, no entanto, legitimá-la. Sócrates permanece em seu lugar para apontar o dedo contra aqueles que o acusam, para que estoure o escândalo. Sua obediência singular é uma forma de resistência que inaugura toda dissidência que virá. Nele ganha voz o “não” da desobediência que é um “sim” à própria consciência.
Contudo, não se deve confundir a objeção de consciência com a desobediência civil. O gesto de Henry Thoreau, o anarquista que se orienta para a vida selvagem, contestando a civilização da qual se recusa a participar, por exemplo, pagando os impostos, é o gesto do objetor. A desobediência civil, mesmo que praticado por um indivíduo, é ao contrário uma contestação comum que coloca em dúvida as instituições, questiona as leis, em nome de uma democracia renovada e de um projeto futuro. Disso decorre a dimensão pública da desobediência. Denuncia-se a iniquidade de um decreto sob os olhos de todos, ostentando, aliás, que a desobediência que – de Gandhi a Martin Luther King – é direcionada não só e nem tanto às autoridades, quanto à consciência dos outros e ao sentido de justiça alheio.
Claro, o irresponsável não obedece, por incapacidade ou por negligência. Por outro lado, o desobediente assume o risco de sua própria ação, reivindica algo a mais de responsabilidade; recusa-se a continuar dizendo “sim” diante do intolerável. A desobediência custa, requer esforço, não só porque contesta as hierarquias do poder, mas também porque interrompe a monotonia do hábito. Além de destacar o dissídio entre direito e justiça, lança luz, assim, sobre uma submissão que, dada muito rapidamente como descontada, poderia, com o tempo, revelar-se um perigo. Por que o submisso obedece?
Essa é a questão levantada por Etienne de La Boétie em seu esplêndido panfleto sobre a servidão voluntária. A resposta está na cadeia de cumplicidade: a pessoa aceita ser tiranizada para poder tiranizar, de ser escravizada para escravizar. Assim, o obediente se vinga ao se contentar com uma pequena parte daquele dispositivo de poder que também mina a democracia.
A desobediência civil legítima, difícil e arriscada é uma obrigação ética e um desafio político. Requer coragem. Acima de tudo, a coragem de não trair a si mesmo, e a justiça em que se acredita, para curvar-se ao comando alheio. Isso significa que, na des-obediência, ainda permanece um obedecer – à própria consciência. E é por isso que o gesto de quem diz “não” não pode ser interpretado como um ato irresponsável de delinquência. Desobedecer é um ato responsável.
Esta é a lição que vem de Eichmann. Se eu não posso ser considerado responsável porque me limitei a obedecer, então quando eu obedeço cegamente, seguindo a lei, eu me subtraio à responsabilidade. Em um mundo onde as ações são segmentadas, e a monstruosidade do todo corre o risco de não ser vista, onde a indiferença exonera de reagir, onde a impotência política é confundida com neutralidade soberana, a desobediência civil é uma obrigação democrática.
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O artigo é de Donatella Di Cesare, filósofa italiana, publicado por Corriere della Sera, 10-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini. Retirado do site do IHU Online.