por Ana Helena Tavares via Colabora*
Biógrafa do lendário bispo de São Félix do Araguaia narra a experiência de se aproximar de um sacerdote das causas humanitárias
Todos nós precisamos de referências. E, de várias formas, somos moldados a partir de um conjunto de exemplos. A família, os amigos, os professores, os líderes religiosos com os quais temos contato desde cedo fazem parte de um mosaico que define quem somos e seremos. Optar por ser biógrafa e escolher personagens é querer oferecer peças para este mosaico, é querer que aquelas vidas retratadas levem ensinamentos para outras vidas. Escolher Pedro Casaldáliga é querer semear esperança. No entanto, espalhar este ingrediente num Brasil tão desesperadamente carente dele não foi premeditado.
Em 2015, quando me lancei na aventura de biografar o lendário bispo do Araguaia, o Brasil não estava mergulhado nas trevas de um governo ultrarreacionário que distribui fuzis e odeia livros. A intenção era lançar em 2018, ano em que Pedro, como o bispo gosta de ser chamado, completou 90 anos. Esbarrei, porém, na dificuldade em encontrar uma editora, o que me obrigou a fazer um financiamento coletivo para bancar a impressão da obra. O segundo, pois já havia sido feito um anteriormente para viabilizar a produção. Os financiamentos produziram um movimento lindo e pulsante, que uniu gente do Brasil inteiro e do exterior. Só que o atraso acabou empurrando o lançamento de “Um bispo contra todas as cercas” para 2019, ano em que essa publicação soa como antítese de “tudo isso o que está aí”.
E ela é. Mas Pedro nunca foi contra “tudo isso o que está aí” somente por ser contra, por uma ânsia de destruição sem se importar com o que pôr no lugar, como aqueles que nos trouxeram até… aqui. Pedro sabia pelo que lutava, tinha causas. Estas sempre valeram para ele mais do que a vida e são elas que o livro usa como fio condutor para contar sua trajetória.
Por morar, desde 1968, quando chegou ao Brasil vindo da Catalunha, em região de conflitos rurais, seu nome ficou muito ligado à Reforma Agrária, à denúncia da escravidão moderna e à defesa dos povos indígenas. Como representante da Teologia da Libertação, ala da Igreja que acredita que a injustiça social não é vontade de Deus e deve ser transformada, é natural que ele tenha enfrentado a realidade do local no qual se instalou. Havia, porém, outros problemas a enfrentar além das questões citadas.
Um deles o analfabetismo. Pedro tomou a iniciativa de perguntar à população de sua prelazia (como se chamam algumas dioceses de interior) o que faltava na região. Logo ouviu a resposta: escolas. Assim, atendendo às necessidades imediatas do povo, foi criado o Ginásio Estadual do Araguaia (GEA), uma instituição laica, e foram desenvolvidos projetos como o Inajá, que tinha como lema “educação a partir da realidade”. Era o método Paulo Freire sendo posto em prática, o que botou a prelazia de São Félix do Araguaia na mira da ditadura militar. O arbítrio carece da ignorância e se regozija com a tristeza.
A libertação precisa do conhecimento e está sempre em busca da alegria.
Não é por outro motivo, senão pela identificação com estas causas, que cada lançamento tem se tornado um ato político, sempre descontraído e lotado de pessoas sedentas de utopia. Elas se alimentam da luz emanada pelo biografado e eu me revigoro a cada evento. No lançamento no Rio de Janeiro, em 8 de maio, houve, ao final, um inspirador momento de oração com a presença de representantes da Igreja Católica, um pastor luterano e um pastor metodista, fazendo jus ao ecumenismo sempre praticado por Pedro.
No lançamento em Campinas, no dia 10 de maio, conheci a pequena Doroty, de 9 anos, que ganhou este nome em homenagem a Dorothy Stang, missionária assassinada por lutar pelas mesmas causas que Pedro abraçou. Os pais compraram um exemplar para a menina e me pediram uma dedicatória para ela. “Valeu a pena”, é só o que se pode pensar neste momento. Como pensei também quando conheci o jovem Gabriel Casaldáliga, registrado assim pelos pais em cartório. Ele compareceu ao lançamento em Belo Horizonte, em 21 de maio, com uma camisa de time na qual se lia nas costas: “Casaldáliga”. É grande a responsabilidade que o rapaz carrega.
É imenso o amor que ele traz no nome. Em São Paulo, foram distribuídas flores de papel com trechos dos poemas de Pedro. Em Belo Horizonte, o grupo Linhas do Horizonte distribuiu para os presentes fitas de várias cores com frases e palavras bordadas, como luta e esperança. As fitas foram enlaçadas nos braços das pessoas, algo de uma delicadeza e de uma afetuosidade ímpar num mundo tão escasso de afeto. Além de fitas, ganhei um paninho, que já tratei de encaixilhar, no qual se lê: “Nunca se esqueça das causas da vida”, frase que Pedro me disse, em 2012, no dia em que o visitei pela primeira vez, em São Félix do Araguaia, na sua casa que não tem muros.
Um dia que, sem nenhum exagero, foi, para mim, um divisor de águas. Após conhecer um homem que tantos consideram santo, mas que é tão radicalmente humano, não seria possível continuar olhando para o céu e procurando um Deus que vive acima de todos. Não, Ele vive no meio de nós. Pedro me fez começar a “tropeçar” Nele pelas calçadas. Em cada rosto de um maltrapilho que implora por comida para si e para os filhos ou de um oprimido que é barrado em locais pela cor de sua pele, lá está Deus.
E está também na natureza. Como estamos todos nós, suas criaturas. No início dos anos 2000, ao receber título de Doutor Honoris Causa pela Unicamp, Pedro disse que era “a primeira vez que uma universidade dava título de doutor a um rio”. Ele é, portanto, um rio, anárquico como o desenho sinuoso do Araguaia, integrado ao meio ambiente e, consequentemente, protetor intransigente deste.
Quando conheci o bispo, queria apenas uma entrevista para uma série de reportagens sobre a ditadura militar a ser publicada no site “Outras Palavras” e que depois foi reunida no meu primeiro livro, “O problema é ter medo do medo”. Mas a inclinação que eu já tinha de trabalhar na fronteira entre jornalismo e literatura e a vontade de contar histórias reais me fizeram perceber que havia encontrado um personagem fantástico e desafiador. Alguém que ousou amaldiçoar cercas sem jamais amaldiçoar pessoas. Estava ali a oportunidade da minha vida de dar efetiva função social ao meu trabalho.
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Publicado originalmente no site do projeto Colabora. Ana Helena Tavares é jornalista, formada pela Facha. Mantém o site de jornalismo político “Quem tem medo da democracia?”. Seus dois primeiros livros-reportagem foram “O problema é ter medo do medo – O que o medo da ditadura tem a dizer à democracia” e “Bandeira de Luta”, ambos pela editora Revan.