Na primeira agressão, homens armados invadiram a aldeia e atearam fogo na maloca de artesanatos e objetos de uso tradicional e religioso. O atentado ocorreu na madrugada do dia 11. Na ocasião, dispararam com pistolas contra as casas de pau a pique, que ladeiam uma retilínea rua de terra. Nos dias seguintes, de forma ininterrupta, até a noite desta segunda-feira, 17, homens em motos passaram a percorrer o trajeto da rua atirando contra as moradias.
“Estamos assim, sitiados. A noite virou um terror: ninguém sai de casa, as crianças são colocadas nas caixas d’água e quem não se sente protegido some no mato. A gente dorme cada dia num canto, onde cada um pensa que os tiros não chegam”, conta J. Pataxó. Conforme os indígenas, as ações são em represália à identificação territorial – ocorrida no final de julho. “A Funai, depois de tanto tempo, não aprendeu que não adianta só publicar, e com muito custo, que a terra é nossa. Nessas bandas aqui papel não significa nada. Precisa proteger, trazer a Polícia Federal, tirar os invasores. Porque aqui temos paus e flechas. Dá contra arma de fogo?”, questiona a indígena. Pela manhã, quando saem das casas, recolhem as “cascas” dos projéteis disparados pelos pistoleiros, noite afora. As cascas, as marcas de tiro, a apreensão: está tudo lá para quem quiser conferir, diz J. ao pedir que as autoridades confiram de perto os relatos.
Depois de duas decisões da Justiça Federal pela reintegração de posse das aldeias Cahy e Gurita, a Funai publicou o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Mexatibá, anteriormente chamada de Cahy-Pequi, situada no distrito de Cumuruxatiba, município de Prado (BA). O que fora motivo de alegria aos Pataxó, ansiosos pela publicação da identificação desde 2013, passou a ser motivo de ódio aos que reivindicam o território tradicional como propriedade. Porém, boa parte dessas ocupações, conforme os indígenas, são irregulares, ou seja, consideradas de má-fé não serão indenizadas. “Aqui tem lixão, assentamentos do Incra com lotes comprados por terceiros, fazendas, retirada ilegal de areia e madeira, resorts, hotéis. Boa parte sem título de posse, quando muito com contrato de compra e venda. Avisamos que essa gente que não deve ter direito de indenização ia reagir”, conta D. Pataxó.
Ameaças e denúncias
Os Pataxó afirmam que ofensas e ameaças são feitas por dois indivíduos, um homem e uma mulher, que se dizem donos de parte das terras onde a aldeia Cahy está instalada. Ambos costumam passar na aldeia para desferir injúrias, ameaças e destilar ódio. A mulher, chamada Catarina Azevedo Pompeu, reivindica a área onde aconteceu o incêndio da maloca de artesanatos, como aponta a Funai. Catarina é dona de um estabelecimento hoteleiro que invade a terra indígena.
Todavia, os Pataxó não sabem quem são os mandantes dos ataques. “Não temos inimigos. Parte da aldeia Cahy, inclusive, está numa área inutilizada. Não tem pasto, plantação. Nada. A gente pensa que querem erguer alguma coisa aqui, pois está ao lado da rodovia. Agora são muitas ocupações não-indígenas no território tradicional. Então não dá para saber quem são os pistoleiros ou quem os está mandando atacar a aldeia”, explica D. Pataxó. Os indígenas pedem proteção e investigação por parte da Polícia Federal, pois os crimes ocorrem dentro da terra indígena e a Polícia Civil não demonstra empenho em fazer o inquérito apontar os responsáveis – há indícios sobre a participação de policiais nos ataques.
Um documento foi enviado ao Ministério Público Federal (MPF) relatando a situação e solicitando às autoridades providências quanto à proteção da comunidade. A Polícia Civil esteve no local para realizar perícia técnica. A Funai visitou a aldeia, mas sem a Polícia Federal e ainda não informou quais medidas serão tomadas para garantir a proteção da aldeia. “Enquanto isso, seguimos aqui no terror, mas não vamos sair. Passamos por isso várias vezes. Já fomos atacados, assassinados, espancados, xingados. Branco não entende que queremos o que é nosso. Bisavôs e os mais lá atrás nasceram e se criaram tudo aqui. Viver na cidade para as crianças é ruim, olha como é que o branco é. E o índio é besta de querer isso para o próprio filho?”, declara J.
Escola atacada
Na aldeia Cahy está a escola indígena. Única construção de alvenaria, sofreu um ataque há poucos dias. Na estrutura, são atendidas 270 crianças, sendo 80 delas da própria aldeia. As aulas estão comprometidas pela insegurança e pelo medo. “Estamos ilhados aqui. A escola, daqui a pouco, vai servir apenas para se proteger dos tiros. As autoridades demoram para agir. Ficamos anos esperando pela publicação da identificação e agora parece que serão mais alguns anos para que possamos viver em paz, com nossa terra identificada”, lamenta R. Pataxó.
De acordo com o presidente da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), o antropólogo e indigenista José Augusto Sampaio, em nota publicada na última semana e com base em denúncia dos indígenas atestada também pelos servidores locais da Funai, “na própria semana de publicação do relatório de identificação, pistoleiros e supostos policiais atacaram a própria escola indígena da comunidade, numa ação que teria sido demandada e comandada pelo servidor do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) Geraldo Pereira, chefe do Parque Nacional do Descobrimento, que também incide sobre a terra indígena”. A pressão do ICMBio sobre os indígenas não é novidade, sendo alvo de mediações realizadas em Brasília e ações na Justiça.
Por trás de todos esses ataques, indígenas, servidores da Funai, antropólogos e os missionários indigenistas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organização que trabalha junto aos Pataxó, são categóricos: tratam-se de interesses tanto de poderosos fazendeiros quanto de especuladores que enxergam nos 28 mil hectares reconhecidos pelo Estado como do povo Pataxó um espaço para a exploração turística, entre outros negócios privados. Com a identificação do território, a tática agora se concentra na intimidação pela violência e ameaças.