Banquete que mata e comensalidade que promove vida
Depois do discurso das parábolas (Mt 13,1-52), a comunidade de Mateus apresenta Jesus vivendo a justiça do Reino (Mt 13,53-17,27). É um projeto alternativo e oposto ao sistema de opressão romana que, por fim, crucifica Jesus de Nazaré em Jerusalém. Para alcançar esse objetivo, conta com o apoio dos governantes dependentes do império, isto é, os sumos sacerdotes na Judeia e a família de Herodes na Galileia. Ainda hoje, há quem busque um projeto alternativo e contrário aos interesses do capital, cujos donos, como ontem, perseguem e procuram eliminar quem se põe ao lado das vítimas desse sistema.
Em Mt 13,57, Jesus já constatara que não era bem acolhido em Nazaré. Na sequência, Mateus relata como o banquete dos poderosos é regado com o sangue do profeta João Batista (Mt 14,1-12). Ontem e hoje, o poder não suporta quem defende a vida dos mais pobres e das lideranças que questionam as injustiças dos que estão a serviço do ídolo riqueza. Por isso, caluniam, difamam ou mesmo matam quem luta por uma sociedade justa, gerando mudanças que garantem cidadania para todas as pessoas.
O pai de Herodes Antipas já tentara matar o menino Jesus (Mt 2,13). E seus partidários estavam instruídos para também eliminá-lo quando adulto (Mc 3,6; 12,13). Não é por acaso que Jesus manda ter cuidado com o fermento dos herodianos, isto é, com sua ideologia e seu modo de vida (Mc 8,15). Ainda hoje, esse fermento continua seduzindo crianças, mulheres e homens para o projeto do mercado. E seus meios de difusão acabam formando muitas pessoas tão corruptas quanto eles mesmos.
Ao contrário do projeto de morte e de mentira, a proposta de Jesus é um programa de vida e de verdade. Não é possível viver as relações do Reino no espaço onde são realizados os banquetes manchados com o suor e o sangue do povo. Por isso, Jesus se afasta e vai ao deserto (Mt 14,13.15), seguido pela multidão. Ir ao deserto é fazer memória do projeto libertador de Moisés, Miriam e Aarão. Depois de muitas dificuldades na caminhada por terras áridas, também eles celebraram o banquete da vida ao partilhar o maná entre todas as famílias, de acordo com a necessidade de cada uma delas (Ex 16,13-36). As pessoas escravizadas pelo rei do Egito exigiram a ida ao deserto para prestar culto a Deus. Não é possível celebrar o Deus da liberdade, da vida e do amor, em terras de opressão. E Jesus teve compaixão das multidões, devido às suas muitas doenças e à sua fome (Mt 14,14).
A solução para a fome não está no dinheiro, mas na partilha
Nesta narrativa, há duas propostas para resolver a fome das multidões. Os discípulos seguem a lógica do dinheiro: despedir a quem tem fome para que, de forma individualista, compre comida para si (Mt 14,15). Essa não é uma solução justa, pois certamente eram poucos os que tinham dinheiro. E o projeto dos que controlam o dinheiro não é solução para a fome do povo, como constatamos ainda hoje em nossa realidade.
A solução que Jesus propõe é outra. E ela está em nossas mãos: Dai-lhes vós mesmos de comer (Mt 14,16). Está também ao nosso alcance: temos aqui cinco pães e dois peixes (Mt 14,17). E todos sabemos que sete (cinco pães e dois peixes somados) significa totalidade, plenitude. A saída não está em projetos mirabolantes, mas está na organização do povo, na política de participação social: Mandou que as multidões se sentassem na relva (Mt 14,19). Convém notar que, ao copiar boa parte de Marcos, a comunidade de Mateus deixou fora a referência de Jesus à organização em grupos de cem e de cinquenta (Mc 6,39-40). No entanto, uma vez organizado o povo, Jesus reza a bênção, tal como todos os pais israelitas faziam antes das refeições nas famílias (Mt 14,19). Assim também procedeu na Santa Ceia (Mt 26,26), declarando toda partilha um ato eucarístico, um ato que torna visível a presença de Deus aos olhos dos pequeninos que entendem estas coisas (cf. Mt 11,25). Depois, partiu os pães e os deu aos discípulos, e os discípulos os distribuíram às multidões (Mt 14,19), de modo que todos, crianças, mulheres e homem, saciaram a sua fome.
Convém lembrar que partir o pão e distribuí-lo não é multiplicação mágica. O milagre está na partilha. É um projeto que envolveu o povo na organização e os discípulos na distribuição. Partilhar é um dos gestos mais divinos que há. É também um dos mais difíceis, a tal ponto de o mundo ainda não ter aprendido, por exemplo, a fazer a partilha justa da terra, da comida e dos demais bens necessários a uma vida digna, ou até mesmo da partilha da ternura e do abraço.
Hoje em dia, ainda há pessoas que preferem ver o milagre num gesto todo-poderoso de Jesus. No entanto, o milagre não está no seu poder mágico. O milagroso, o divino está justamente na simplicidade do gesto da partilha. E muitas pessoas negam-se a ver o milagre no repartir. Talvez isso aconteça porque ainda são prisioneiras de uma catequese conservadora. Ou talvez, porque não querem partilhar os bens e o poder que acumularam. Ou ainda, porque estão possessas pelo desejo consumista com que o sistema do capital seduziu suas mentes e seus corações.
Quando há partilha, muita gente, crianças, mulheres e homens, pode comer e ficar saciada (Mt 14,20). E mais. Dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios. Doze é o número do antigo Israel, representado pelos pais das 12 tribos. É também o número do novo Israel, simbolizado pelos 12 apóstolos. As sobras significam que, no projeto do Reino, nenhuma família israelita ou cristã pode passar fome.
Já na segunda partilha dos pães (Mt 15,32-39), a sobra é de sete cestos. E isso não é pouca coisa. Revela a vontade de Deus de que haja pão não somente na mesa do antigo e do novo Israel (12 pais das tribos e 12 apóstolos). O plano do criador é de que haja o necessário nas mesas de todas as famílias do mundo, sejam elas brasileiras, palestinas ou israelitas, pois todos os povos são povos de Deus, uma vez que ele não faz acepção de pessoas (Dt 10,17; At 10,34-35).
Recolher as sobras é também uma lição para evitar o desperdício de alimentos, tão comum em nosso meio.
A comensalidade no centro do banquete do Reino
É inegável a centralidade do pão partilhado no programa de Jesus. Não é por acaso que sua vida inicia dentro de uma padaria (Belém significa casa do pão). Situar o nascimento de Jesus no lugar teológico da esperança profética de Miqueias (Mq 5,1) sinaliza que seu reinado não vem de Jerusalém nem de quem ocupa o centro do poder. Porém, ele nasce na periferia e é para quem ali se encontra. De outro lado, indica também o foco da missão de Jesus, isto é, o pão, e pão repartido.
A partilha dos pães é o único sinal realizado por Jesus que é narrado por todos os evangelistas. Isso revela o quanto esse gesto foi central em sua proposta, ao ponto de nenhum evangelista deixar de lado a memória dessa prática cotidiana do Nazareno.
Por que será que o pedido por pão é o pedido central do Pai Nosso (Mt 6,9-13)?
Na forma do Pai Nosso em Lucas, temos dois pedidos antes e dois depois (Lc 11,2-4). Já em Mateus, são três pedidos antes e três depois (Mt 6,9-13). De qualquer forma, o pedido pelo pão é o coração do Pai Nosso. E é pão nosso. Não é somente meu, nem teu. É nosso. E não pedimos pão para o ano todo. É para cada dia. Portanto, é pão repartido (é nosso) e não acumulado (é para cada dia).
Por fim, Jesus encerra sua vida pública, resumindo o projeto do Pai no gesto da distribuição do pão na Santa Ceia. Na eucaristia, celebramos a justiça do Reino de Deus já presente e que é, acima de tudo, partilha. É ele mesmo se tornando pão ao reparti-lo, dando sua vida por uma causa justa. Na Santa Ceia, ao mesmo tempo em que celebramos o que há de mais revolucionário e transformador, denunciamos o sistema que acumula e gera fome.
O desafio de Jesus continua ecoando: Dai-lhes vós mesmos de comer…
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Fonte: Texto de Ildo Bohn Gass, biblista e autor de livros pelo CEBI. Conheça a Coleção Uma Introdução à Bíblia.