por Carol Castro e Carol Scorce para Carta Capital*
Toda a sociedade perde com a repressão aos movimentos sociais, pois é deles que surgem as demandas invisíveis aos governantes
Marcela Carbone e João Pedro Buzalski, estudantes da Unicamp, distribuíam panfletos favoráveis ao candidato Fernando Haddad, do PT, próximo à entrada de um terminal de ônibus, em Campinas (SP), quando um guarda municipal se aproximou.
Ele avisou que era proibido fazer propaganda eleitoral ali, por ser um estabelecimento público. Os dois argumentaram: conheciam a lei e, por isso, estavam do lado de fora do terminal. Não adiantou. O guarda chamou outros policiais, revistou a bolsa dos dois e apreendeu todo o material de campanha. Marcela ligou para a mãe, que é advogada, e reclamou que a ditadura havia voltado. “É isso mesmo, a ditadura voltou, graças a Deus”, concordou o guarda. Eles seguiram conversando com as pessoas. E foram, então, levados até a delegacia por desacato e crime eleitoral.
Não falta respaldo. Jair Bolsonaro avisou com todas as letras, após conquistar 46% dos eleitores no primeiro turno: “vamos colocar um ponto final em todas as formas de ativismo no Brasil”. Em resposta às ameaças do candidato, mais de três mil organizações assinaram uma carta de repúdio a ele.
“Uma de suas principais pautas é aniquilar o ativismo. E ele usa as palavras militância, ativismo, ONGs, como se fossem sinônimos. Não sabe bem o que é. Parece que quer acabar com tudo aquilo que seja contrário à ideia autoritária de governo que ele tem”, explica o advogado Hugo Leonardo, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
E antes mesmo do final do segundo turno, as palavras do capitão já chegaram às ruas do País que mais mata defensores de direitos humanos nas Américas. “As ações indiretas a esse discurso já começaram. Esse episódio em Campinas é um exemplo: um agente público utiliza seu micropoder para restringir a capacidade de ação dos atores sociais por entender que isso é correto. E está amparado por um ambiente maior”, completa Adrian Gurza Lavalle, cientista político da USP.
Quando joga todos os movimentos sociais e as diversas formas de ativismo no mesmo saco – “as coisas ruins do Brasil” –, Bolsonaro parece ignorar seus próprios militantes. Ou as organizações evangélicas, que fazem trabalho voluntário pelo Brasil e o apoiam. Não é bem assim. A mensagem é outra: quem define o que é bom ou ruim é ele.
“Uma vez que alguém acha que tem esse direito de decisão, sem direitos fundamentais, numa linha arbitrária, ninguém está a salvo. Não sabemos quais organizações seriam alvos de ações repressivas, mas sabemos que estarão na lista todos aqueles que eventualmente vierem a incomodá-lo”, diz Lavalle.
Duas delas tendem a ser alvos constantes: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Em discurso, no início do ano, Bolsonaro chamou João Stédile, líder do MST, de “vagabundo” e que, por ele, todos os cidadãos de bem teriam como cartão de visita um fuzil 762 para receber o MST. “Nós nascemos no período da ditadura, passamos pelo governo do Collor, Fernando Henrique, que quis criar divisões, e cá estamos. Como organização não temos dúvida de que continuaremos a existir, mas em um país cujas ameaças são graves”, conta Gilmar Mauro, coordenador do MST.
Nessa história, há alguns agravantes. Em 2016, Dilma Rousseff aprovou a lei antiterrorismo para combater qualquer ameaça ao País durante as Olimpíadas, que aconteceu em 2016 no Rio de Janeiro. Com uma ressalva: não podem ser enquadrados como terrorismo manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosas, de classe ou de categoria profissional.
Só que, segundo a organização de direitos humanos Justiça Global, existem outros sete projetos de lei em tramitação no Congresso para modificar essa lei. Uma delas saiu justamente do gabinete de Bolsonaro e propõem uma ação integrada das forças de segurança e práticas de vigilantismo – além de tornar a definição de “ato terrorista” mais ampla do que o texto atual. Outro PL pede que atos políticos possam ser enquadrados como terrorismo, como mandava o primeiro texto.
Tudo precisaria passar pelo Congresso e Senado. Mas, ainda que nada seja alterado, se ocupar a presidência, o militar pode contar com a boa vontade de juízes. “A equipe desse candidato já tem mencionado que se Stédile invadir propriedade será enquadrado como terrorista. Não precisa de um exercício muito rigoroso para traçar um cenário bastante duro do que nos espera”, lamenta Leonardo. “Apesar da salvaguarda, depende da interpretação do que é movimento social. Hoje temos várias organizações com estatuto, registro, CNPJ. Se deixarem de existir, esse movimento passa a não ser mais reconhecido. E serão apenas um agrupamento de pessoas fazendo militâncias, algo que será vetado, pelo que ele [Bolsonaro] diz”, completa o advogado.
O que o ativismo faz por você
Se movimentos sociais forem reprimidos a sociedade toda perde. É dali que surgem as demandas invisíveis aos governantes. “Parte da função da mobilização social é incomodar o poder. E a democracia permite isso. A sociedade civil é uma fonte de inovação e expressão da diversidade social”, explica Lavalle. “Movimentos sociais atentam para problemas que não estão sendo olhados, mas existem. Quando essas coisas ganham atenção social o mundo da política é obrigado a prestar atenção”, conclui.
Só para citar alguns exemplos, que tanto pautaram os discursos políticos nos últimos anos, foi ideia de organizações civis, entre elas o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, o projeto Ficha Limpa. Não veio de graça também a política de cotas de candidaturas femininas na política – vieram de uma demanda crescente dos movimentos feministas. Foram os movimentos negros que acabaram com a falsa ideia de democracia racial. Sem a atuação de organizações ambientais e de movimentos indígenas, o desmatamento na Amazônia estaria ainda pior.
Sem essas lutas, sem ativistas, parte da sociedade tende a cair de novo no esquecimento.
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Publicado por Carta Capital.