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Carta denuncia crise humanitária do povo Guarani e Kaiowá em Dourados (MS)

Carta denuncia crise humanitária do povo Guarani e Kaiowá em Dourados (MS)
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem feito circular uma carta entre organismos de direitos humanos no país e no mundo classificando como crise humanitária o que ocorre com o povo Guarani e Kaiowá. Para o Cimi, a paralisação das demarcações gera insegurança jurídica e, como consequência, violência contra os indígenas. 

Entre ações de reintegração de posse, ameaças de morte, suicídios, assassinatos, atropelamentos e racismo, os Guarani e Kaiowá buscam retomar áreas de ocupação tradicional em busca de dias melhores para as famílias que há décadas sobrevivem em acampamentos ou em situação de confinamento.

A situação mais flagrante de tal contexto, nas últimas semanas, é o iminente despejo do tekoha Apyka’i, em Dourados. “A comunidade do Apyka’i espera pelos estudos para a demarcação de sua terra ancestral, mas os processos se arrastam em intermináveis ações judiciais. Isso porque a partir de 2013, tanto estudos quanto demarcações foram paralisados por determinação do próprio Governo Federal em todo o Brasil”, diz trecho da carta.

Leia o documento na íntegra:

 
 
Crise humanitária de Guarani-Kayowá em Dourados (MS)

Famílias sobreviventes dos Guarani-Kayowá da comunidade indígena APYKA´I, localizada em Dourados (MS) vivem em uma pequena faixa de terra às margens da BR 463. Expulsos de seus territórios em 1999, atravessam uma profunda crise humanitária sobrevivendo em acampamentos e sendo forçados a perambular na beira das rodovias.

Um dos invasores do Território Indígena APYKA’I é o dono da fazenda Serrana, cujas terras são alugadas pela Usina São Fernando para a monocultura em larga escala de cana-de-açúcar com vistas à produção de etanol para o mercado mundial. O dono da Usina, amigo pessoal e conselheiro do Lula, José Carlos Bumlai, foi favorecido em 2008 com dinheiro público do BNDES e do Banco do Brasil para a construção da Usina em plena crise financeira mundial – os bancos privados diminuíram seus empréstimos.

Atualmente a Usina São Fernando acumula uma dívida de 1,3 bilhão de reais, sendo os bancos públicos os maiores credores (530 milhões) entre outras 12 instituições financeiras. A Usina se encontra devendo também para fornecedores, fiscos estadual, federal e municipal, Previdência Social e não têm pagado os salários dos trabalhadores. Em julho de 2014, 49% da empresa foi comprado por um grupo de investidores dos Emirados Árabes Unidos fato que comprova que o inimigo não é apenas nacional, mas também internacional.

Ao longo dos 14 anos, os Guarani e Kaiowá do APYKA´I não deixaram de resistir e perseverar na luta pelos territórios onde se encontram seus ancestrais. Realizaram inúmeras retomadas das terras invadidas pela fazenda Serrana. Durante uma das retomadas, em 2008, a comunidade ocupou uma pequena área da fazenda próxima à mata da Reserva Legal. No entanto, segundo os indígenas de APYKA’I, foi cercada pelos “vigilantes” da empresa de segurança particular GASPEM contratada pela Usina São Fernando. Estes impediram a entrada da FUNAI e da FUNASA para prestar atendimento aos indígenas. Em abril de 2009, a Justiça determinou a reintegração de posse em favor do dono da fazenda, Cássio Guilherme Bonilha Tecchio, enviando a comunidade de volta para a beira da estrada.

Em setembro do mesmo ano, um incêndio causado pelo ataque de nove jagunços fortemente armados e ligados à GASPEM – empresa que tem tido uma atuação truculenta contra retomadas indígenas em outras partes do estado – fez com que o Ministério Público Federal (MPF) ingressasse com processo de responsabilização dos donos da Usina por tentativa de genocídio. A medida não trouxe nenhum resultado concreto para a demarcação das terras indígenas e o processo foi arquivado.

A comunidade do APYKA´I espera pelos estudos para a demarcação de sua terra ancestral, mas os processos se arrastam em intermináveis ações judiciais. Isso porque a partir de 2013, tanto estudos quanto demarcações foram paralisados por determinação do próprio governo federal em todo o Brasil. O índice de demarcações é o mais baixo da história desde a promulgação da Constituição de 1988, que contempla o direito dos indígenas à terra: se comparado ao governo Collor de Mello, que em um período de dois anos homologou 112 terras indígenas, de 2011 a 2013, sob o governo Dilma, houve apenas 10 homologações. Isso não é de se estranhar com a política de expansão do agronegócio adotada e impulsionada vigorosamente pelos governos petistas. Ainda mais, a paralisação aponta para um profundo retrocesso com a PEC 215 que transfere a prerrogativa de aprovação de terras indígenas do poder executivo para o Congresso Nacional, atualmente hegemonizado pela bancada ruralista.

O retrocesso não acaba por aí e a ele se articulam a ofensiva do Ministério da Justiça e de suas minutas. Junto com a Advocacia-Geral da União (AGU), o MJ lançou contra as comunidades indígenas a Portaria 303, que proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), começou a revisar áreas já demarcadas e homologadas, anulando-as, e impede suas demarcações baseado em justificativas como o marco temporal. Tal é o absurdo, caso do povo Terena da Terra Indígena de Limão Verde (MS), cuja homologação já tinha sido assinada pelo presidente Lula, há 10 anos, e o STF anulou todos os procedimentos.

Como se isso não bastasse, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) sofre todo tipo de perseguições, seja da Polícia Federal como dos próprios fazendeiros e políticos ruralistas. Cientes da conjuntura política e jurídica favorável, os ruralistas avançam na ofensiva tendo a seu favor toda a máquina jurídica e policial (Departamento de Operações de Fronteira (DOF), Policia Militar e Polícia Civil), colocada à disposição pelos principais políticos do estado, incluindo o próprio governador. Dessa forma, usam a tribuna da Assembleia Legislativa do MS para arquitetar prisões contra os missionários do Cimi, declarando-os invasores de propriedade privada quando visitam as áreas retomadas pelos povos indígenas. Incentivam que chamem a polícia para prender os missionários que realizam um trabalho legitimado e amparado pelas leis vigentes, bem como pela necessidade de observação das violações contra os povos indígenas. Não é coincidência que esteja em vias de aprovação a CPI do Cimi na Assembleia Legislativa do MS.

Enquanto isso, os Guarani e Kaiowá de APYKA’I existem como seres estranhos em seu próprio chão: vivendo em não mais do que 4 ou 5 hectares, bebem das águas do córrego mais próximo contaminado pelo veneno da cana que os cerca e vão levando seus dias sem condição nenhuma de saneamento, em extrema miséria, com fome, que aplacam com as sobras da usina, e com medo do próximo ataque dos pistoleiros. A Funai ajuda com algumas cestas básicas, já que o governo do estado só distribui cestas para os indígenas que moram nas reservas. Para o antropólogo Marcos Homero Lima, do MPF/MS, “as cestas do governo do estado funcionam como uma chantagem velada. A mensagem não dita é: índio da estrada não tem direito. Índio com direito é aquele que não reivindica terra”.

Nos fundos do pequeno acampamento do APYKA’I existe um cemitério, onde cruzes ficam expostas como símbolos do martírio destas famílias. Ali foram enterradas desde pequenas crianças, vitimadas por atropelamentos na rodovia, até seus idosos (lideranças), abatidos pelas bárbaras violações impostas ao povo originário de APYKA’I, incluindo uma idosa vítima de uma pulverização de veneno feita intencionalmente por um avião, o qual os indígenas dizem ser de propriedade da Usina.

Em relação a situação geral do estado, o MPF considera o Mato Grosso do Sul a “Faixa de Gaza brasileira”, uma vez que a mortalidade entre os Guarani e Kaiowá, em especial por mortes violentas, atinge números mais altos do que nos países mais violentos do mundo. Segundo definição do Secretário Geral da Anistia Internacional que visitou o APYKA´I recentemente, e não foi recebido pelo governo Dilma, este é um “lugar onde os direitos humanos não existem”.

Nesse exato momento, julho de 2015, uma nova ordem de despejo está em curso e deverá ser cumprida em detrimento das famílias que se encontram em situação de absoluta vulnerabilidade. O juiz Federal Fábio Kaiut Nunes, de Dourados, atropelando todas as tentativas humanitárias de acordos propostos pelo MPF, deixou a comunidade sem nenhuma possibilidade jurídica de defesa, fazendo valer exclusivamente a decisão de cumprimento de reintegração de posse.

As famílias Guarani e Kaiowá, lideradas por dona Damiana, mulher, mãe, avó e humana admirável, que tem mostrado uma coragem inabalável perante o drama de APYKA’I, decidiram que só deixarão seu tekoha (aldeia) mortos e que resistirão ao despejo por negarem-se a viver longe de sua terra e às margens das rodovias novamente. Junto às famílias, outros Kaiowá começam sua migração de quilômetros para proteger o APYKA´I, que pede apoio da sociedade para continuar existindo e para esperar dignamente pelos estudos de sua área e pela demarcação de sua terra ancestral, seu pequeno lugar no mundo. Enquanto algumas visões de mundo são espaçosas, como a do agronegócio, outras visões apenas buscam pequenos pedaços de terra para serem grandiosas. Ajudem: Deixem o APYKA´I viver!

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