por Marcos Monteiro*
Meu querido inimigo,
Confesso a minha frustração. Ainda não consegui lhe amar, como Jesus pediu, e essa é a última carta, talvez a mais dolorosa. Cada uma está sendo um parto e, como não tenho útero, sinto as dores de um homem parindo uma bezerra, tomando emprestado uma imagem.
E bezerro por bezerro, lembrei que você usa o mote “Deus acima de tudo” e me pergunto se o que você adora não é aquele bezerro de ouro do Êxodo. Por causa disso, gostaria de compreendê-lo a partir dos dez mandamentos.
O seu patrimônio e o de sua família é muito grande e tem aumentado a cada ano. Desse modo, desconfio que o seu deus é o Dinheiro, e a sua profaníssima trindade, propriedade, poder e prazer. Você pode até não se curvar diante de imagens, mas construiu uma imagem de si mesmo que os seus adoradores chamam de mito.
Interessante, dos inúmeros mitos das antigas tradições, pensei na Esfinge e em seu enigma, “decifra-me ou te devoro”. E se eu lhe decifrei você tem tentado devorar cotas para negros, terras para índios, leis de proteção às mulheres, direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Então, você não segue os primeiros mandamentos e idolatra a si mesmo e sua imagem mítica.
O aumento da jornada de trabalho é exatamente o contrário do princípio do sábado. O direito ao descanso remunerado está associado ao direito ao trabalho, e a luta por menos direitos para mais trabalhos é uma falsa disjunção, que pode ser colocada igualmente na violação do princípio trazido pelo sábado.
Mães, mulheres, são postas como pessoas de segunda classe, com direito a salário menor e com menos licença-maternidade, sem a proteção da Lei Maria da Penha, e são coisas comestíveis, como uma de suas frases vem dizendo, o que coloca pelo menos três mandamentos sob suspeita de violação.
Possibilidade de vantagens ilícitas, usurpação de direitos de índios e negros à propriedade, podem ser chamados de furtos, bem como acusações infundadas e mentirosas são falsos testemunhos. A luta pelo extermínio de bandidos, ainda com o agravante do elogio da tortura, é desobediência explícita ao mandamento “não matarás”, do mesmo modo que são estratégias de morte, políticas que abandonam a proteção dos mais pobres.
Pois bem, meu querido inimigo, sobrou apenas um mandamento, sobre o qual estou em dúvida. Você usa exageradamente o nome de Deus, o que em política e teologia tem uma vaguidão conveniente. Qual o seu deus e o que significa “Deus acima de tudo” como programa de políticas públicas? Também, essa convicção que você expressa de ter sido escolhido por Deus, significa exatamente o que? Você sabe que Hitler se considerava um escolhido de Deus e também foi apoiado maciçamente por evangélicos.
Então, me parece que não está usando o nome santo de Deus em vão. Em nome de Deus está conseguindo muitos votos e muitos apoios religiosos, para torturar e matar bandidos, para discriminar negros, índios e mulheres, e para extinguir direitos dos trabalhadores e dos mais pobres. Fico impressionado como os discursos de pastores e líderes evangélicos conseguem ver coerência em você.
Não é em vão que usa esse nome, pois qualquer pessoa sabe que o nome de Deus abre portas para sucesso, poder e fama. É uso indevido, manipulação eleitoral grosseira, mas não é em vão: funciona.
Se houvesse discernimento verdadeiro das lideranças, você seria considerado um não-cristão, um herege, e correria perigo porque a igreja que lhe apoia também considerou e ainda considera herege bom herege morto.
Chego a essa última carta exausto e sem esperança de aprender a lhe amar, meu caro inimigo. Então, eu insisto, converta-se ao Deus do amor, da justiça, da verdade e da misericórdia. E acabe com essa mania de querer ser presidente. Será muito melhor para você, e para o Brasil, e para os cristãos.
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Marcos Monteiro, pastor batista.