A reintegração parecia inconcebível para o grupo de cerca de 400 indígenas. As famílias, espremidas em 80 hectares entre o que sobrou de mata, a rodovia BR-463 e a plantação da fazenda, ocupam com seus barracos de lona um ínfimo espaço diante do horizonte de soja, onde tentam cultivar espécies como feijão, milho e mandioca. Ali estão antes mesmo do que Bonifácio Reginaldo, liderança e cacique da comunidade, consegue se lembrar.
“Meus avós nasceram e foram enterrados aqui”, diz o homem que, com 74 anos, só saiu do Pacurity quando levado à força para o Reformatório Krenak, espécie de centro de tortura de indígenas na época da ditadura, de onde retornou três anos depois. “Vi e vivi muita coisa bárbara lá. Chamavam de cadeia, mas era um açougue de índios. Os corpos dos que eram ‘abatidos’ levavam para lugares distantes… Consegui sair e fui deixado em Nova Alvorada do Sul, de onde vim a pé pro Pacurity. Quando cheguei aqui de volta o pessoal ficou muito alegre porque eu estava vivo”, lembra.
As motivações para tirarem Bonifácio de sua terra não diferem muito das atuais, mais de 48 anos depois do episódio. “Queriam mandar minha família embora de lá e um fazendeiro na época achou que eu tava atrapalhando… Eles tinham muito poder, eram coronéis mesmo”, explica.
A região que abrange a comunidade, junto com Apyka’i, faz parte da Terra Indígena denominada Dourados-Peguá, com demarcação prevista no Compromisso de Ajustamento de Conduta que a Fundação Nacional do Índio (Funai) firmou com o Ministério Público Federal (MPF) em 2007 e que foi executado judicialmente nessa segunda-feira (19), obrigando a União a demarcar as terras indígenas reivindicadas no estado.
Na contramão dessa decisão, a reintegração foi concedida aos herdeiros da Fazenda São José, propriedade de 260 hectares que tem 127 deles arrendados para o plantio de soja. No processo, a alegação é de que os indígenas são violentos, ameaçam o arrendatário, roubam seus animais e o impedem de plantar. Bonifácio lamenta o fato de que a comunidade não foi ouvida. “Estão decidindo pelo que os fazendeiros disseram lá no papel, mas ninguém conhece nossa história, que nossos antepassados nasceram e morreram aqui. Isso que eu queria explicar certinho pra juíza, queria que ela me ouvisse pra saber o mal que ta fazendo. Essa terra é nossa e nunca saímos, nunca fomos atacar ninguém… estamos aqui e sempre estivemos em paz”.
Em paz, apesar de todos os ataques contra sua sobrevivência e memória. O MPF abriu inquérito em 2005 para investigar Atílio Torraca (proprietário que faleceu em 2012) por um incêndio criminoso que devastou as casas dos indígenas. Em 2013, o MPF constatou que um dos cemitérios indígenas fora destruído “a mando do arrendatário, que queria apagar as provas de que a terra é nossa”, diz Bonifácio. “Mas antes o MPF tinha tirado foto e registrado. Temos ainda outros três cemitérios, mas cuidamos e passamos cerca pra ninguém destruir”.
Assim como na maioria das comunidades indígenas em Mato Grosso do Sul, direitos básicos como o acesso à alimentação adequada e à água potável ainda é uma realidade distante para os Guarani-Kaiowá em Pacurity. Bonifácio conta que consomem água de um córrego que corta a mata. “O veneno usado na plantação escorre pra lá e eles ainda jogam animais mortos. É perigoso usar a água, as crianças sofrem com diarréia, mas não temos outra opção”.
Hoje as terras do Pacurity já não oferecem aos indígenas a caça farta de antes e o pouco que conseguem plantar, no solo gasto de agrotóxicos, muitas vezes é sabotado por funcionários das fazendas. “Geralmente passam por cima de nosso roçado quando vão colher a soja, esmagando tudo”, diz o indígena Paulo Reginaldo. “Não fazemos nada de mal, somente temos a vida do Guarani-Kaiowá. Por que não querem deixar a gente viver?”.