por Annelise Krause militante da Resistência Popular Sindical*
Em 2015, o tema da semana mundial da amamentação (1º a 7 de agosto) foi “amamentar e trabalhar: podemos conseguir!”. Estamos novamente em agosto, o mês da amamentação, em que o tema definido é “Amamentação é a base da vida”. Amamentar é, de fato, algo incrível, o leite materno é insubstituível, mas as condições para seu sucesso estão longe de serem alcançadas.
O termo “híbrido natureza-cultura” já foi utilizado para conceituar a amamentação. No texto de João Aprígio de Almeida são resgatados os processos históricos que foram definindo o efeito da cultura (ou a imposição desta) neste ato que parece tão biológico e instintivo.
Como não é novidade, o controle do corpo feminino sempre foi a investida da dominação patriarcal. Foi no último século que a entrada da indústria de leite em pó atuou ferozmente para desencadear o desmame comerciogênico, e matar crianças na busca pelo lucro, até que as evidências fossem denunciadas mundo afora por movimentos de mulheres.
Aqui tem-se um ponto interessante. A discussão da emancipação feminina, e do próprio feminismo, muitas vezes fraqueja nesta discussão. Considerado culturalmente um ato de amor, entrega e sensibilidade, a amamentação ainda é pauta resistente nos movimentos feministas, mesmo sendo indiscutível sua superioridade enquanto fonte de alimento, proteção e segurança para a criança. E embora contraditório, é justamente pelo controle de nossos corpos que devemos reafirmar o direito de amamentar como urgência feminista.
Porque não amamentamos como fazem as culturas originárias?
Vamos reparar que não é estranho imaginar uma indígena amamentando uma criança que caminha, come, brinca com autonomia. Mulheres ocidentais são até mesmo “ofendidas” com expressões do tipo “parece índia” quando optam pela amamentação prolongada. Mas o que isto nos diz?
Antes de colocar uma opinião, importa dizer que não há julgamento sobre mulheres que optam por não amamentar, recusam-se a seguir amamentando após os primeiros meses, ou qualquer outra condição que defina ou culpabilize as mulheres neste sentido. Neste artigo, defende-se que exista o direito de escolha, o que exige, portanto, informação sobre o que e porque escolher.
Durante os séculos XVIII e XIX, com a escravidão, existia a escrava “ama-de-leite” para amamentar os filhos das sinhás, mesmo em detrimento dos seus próprios. Estás mulheres muitas vezes eram obrigadas a depositar seus filhos na roda dos expostos, para a manutenção do negócio de seu dono, o aleitamento mercenário. Esta situação reverbera até hoje no argumento de que o leite materno só é importante para pobres, ou que as mulheres negras tenham melhor sucesso na amamentação. Mas não é bem assim.
Fomos empurradas ao mercado de trabalho de forma precarizada, as mulheres não tinham direito à licença maternidade. Ainda hoje a licença maternidade é pequena para a recomendação de aleitamento materno exclusivo até seis meses, e o pior, reforça a responsabilidade da vida do bebê somente à mãe, posto que a licença paternidade possui um período patético de 5 dias.
No período em que a mulher entrava para mercado de trabalho surgia a nova invenção industrial, produto de ciência de guerra: o leite em pó. Sob alegações fantásticas que assemelhavam o leite que alimenta um bezerro ao leite humano, e muita propaganda e amostras grátis, abriu-se um precipício geracional de crianças alimentadas por leite de outra espécie, inicialmente leite condensado, chegando a atual fórmula infantil. Este vácuo geracional ocasionado pelo desmame comerciogênico da indústria de leites é o que marca as últimas gerações de avós. Na certeza de estar oferecendo o melhor para os netos, insistem em gerar dúvida sobre a capacidade de suas filhas ou noras sobre alimentar as crianças, afinal, assim foi a alimentação dos “sobreviventes” dos anos 50 e 60.
Importa salientar que a mortalidade infantil era altíssima no período. Fala-se sobreviventes, pois é recorrente o argumento “meus filhos se criaram a leite em pó e estão vivos”. De fato, sobreviveram. E temos hoje uma geração de crianças amargando inúmeras alergias alimentares ou não em decorrência da irresponsabilidade da indústria de alimentos nas décadas anteriores.
Na atualidade também “corre-se atrás do prejuízo” das intervenções durante o parto e o nascimento. As instituições governamentais, forçadas por diversos grupos de mulheres, têm buscado humanizar o parto, pelas inúmeras evidências de que a forma de nascer que as mulheres têm se submetido só traz prejuízos a elas e aos seus bebês. O excesso de medicalização e de cesarianas (eletivas e não indicadas) e a violência obstétrica impedem um parto saudável e seguro, e a amamentação na primeira hora de vida do bebê. Este delicado momento é indicador de sucesso na amamentação e na segurança materna quanto à sua capacidade de parir e nutrir seu filho. A recuperação cirúrgica muitas vezes afasta a mulher do bebê por muitas horas, horas estas que são chave para uma instintiva boa pega na mama, por exemplo.
Nascido o bebê, como comentado antes, esta mulher precisa de uma rede de apoio. Um bebê recém nascido mama muitas vezes durante o dia, pode chorar muito, pode estar totalmente necessitado desta mãe de onde recém saiu (lembram que ele estava por nove meses no útero, né?). É fundamental que existam pessoas dispostas a ajudar esta mulher. No contexto da maioria das mulheres, esta rede não existe, ou é negativa (desencorajadora). Muitas mulheres adoecem e se deprimem ao constatar que acabam de “ganhar” mais uma tarefa doméstica, mais uma responsabilidade, enquanto seu parceiro, se houver esta figura, segue na rotina, indo ao trabalho, retornando cansado e aguardando uma refeição e roupa limpa. Enquanto aquela mulher está desesperada com a obrigação solitária de fazer um filho sobreviver, quando não são dois, três, quatro para cuidar…
No caso das mulheres trabalhadoras com direitos, chega o momento de retorno ao trabalho e a ida da criança à creche. Por costume ou cultura, pois nada na literatura recomenda, a maioria das escolas indicam o desmame – precoce – para melhor adaptação da criança. São sugeridos diversos elementos que prejudicam a amamentação, como bicos e mamadeiras, para “facilitar” este processo. Criança desmamada, aumenta o risco e a gravidade das doenças. Aumenta também o custo de vida da família para comprar um outro leite (!!!) e medicações. Nem sempre as empresas compreendem as faltas das trabalhadoras para cuidar do filho, e, logo, são demitidas. Isto leva a um processo escandaloso de insegurança alimentar, situação em que falta comida para a família devendo alguém deixar de receber alimentação para que outro receba. Em geral, a mãe é esta pessoa.
Numa situação positiva em que a mulher segue amamentando após o retorno ao trabalho, dificilmente encontrará salas de apoio à amamentação, um lugar reservado para a retirada do leite do peito e o armazenamento seguro deste, para que chegue em casa e seja oferecido nos momentos de separação da mãe e da criança. Também são raras as empresas que aderem às políticas públicas de incentivo à amamentação – empresa cidadã – em que é permitida a extensão da licença maternidade por mais dois meses, com restituição deste período no imposto de renda da empresa.
Não menos importante é a insistência da indústria de leite em pó no marketing ilegal de seus produtos. Desde 1981 existe um código internacional de comercialização de produtos para lactentes. O Brasil possui normas de marketing e comércio de produtos para este público desde 1992, e, mesmo assim, anualmente a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN) realiza monitoramento e identifica irregularidades desta indústria, desde promoção de seus produtos em mercados e farmácias até a compra de profissionais de saúde com congressos em cruzeiros, brindes e benefícios.
Não é raro ler prescrições médicas com nome das fórmulas de leite em pó mais famosas, muitas vezes chamadas no diminutivo, como se este produto fosse algo razoável em comparação à complexidade de um produto espécie-específico como o leite materno. Ou você ofereceria com tranquilidade leite de elefoa a um gatinho? Ou leite de canguru a um bebê baleia? Se sim, é importante saber que nossa fisiologia enquanto mamíferos é muito diferente, nossas proteínas, nossas doenças – e fatores imunes, nossa demanda de crescimento, nossa formação cerebral, e até nosso paladar, são completamente diferentes. Alguns diriam até que a única semelhança é existir uma substância que sai das mamas das fêmeas. Não é diferente com leite que é feito para bezerro. As fórmulas infantis são feitas com leite de vaca. Como aquelas do início do século vinte.
Pois bem, é difícil amamentar. E não é porque dói. Não é preciso falar de dor física para falar da dor da mulher ao amamentar. A propósito, a dor física é a mais fácil de ser amparada. Um bom profissional de saúde sabe como ajeitar a posição de um bebê no peito da mãe, se esse for o caso. O difícil é amamentar e dar conta de tudo o que é cobrado da mulher. Esta mesma: a empoderada, feminista, guerreira. Amamentar é um ato social, biológico e cultural. Não amamentar é responsabilidade de todas e todos.
Finalmente, também é difícil lutar quando o que realmente importa é preocupa as mulheres recém mães é invisibilizado pela burocracia dominada por homens, provavelmente reprodutores destas práticas no cotidiano, e pelo reforço do economicismo. Garantir “o leite das crianças” poderia ser mais fácil se olhassem para suas mães, e não fosse apenas uma fala retórica.
Estamos em agosto. Estamos em luta pelo direito de fazer escolhas. Estamos juntas?
Em tempo: existem diversas ações promovidas pelo SUS para apoiar e promover o aleitamento materno. Um exemplo maravilhoso são os bancos de leite humano, estrutura existentes em hospitais que orientam mulheres e recebem leite humano para ser doados para crianças em unidades de tratamento intensivo, que, por algum motivo, não tem disponível o leite de sua mãe. O leite passa por diversos processos e testes para garantir segurança e qualidade no alimento oferecido aos recém nascidos. O Brasil é referência mundial desta ação.
Na atenção primária à saúde, os trabalhadores devem receber formação de manejo clínico de amamentação para abordagem correta de dificuldades recorrentes.
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Publicado no site Repórter Popular, 10/08/2018.