Por odja Barros*
“Mulheres assim” e a balada dos corpos apedrejados
A lei de Moisés manda que “mulheres assim” sejam apedrejadas”, e tu o que dizes? (João 8:5)
Hoje fui atravessada pela história de Luana, mulher transexual assassinada a pedradas em Natal- Rio Grande do Norte. A memória de Luana foi trazida no depoimento de Jéssica, sua irmã, também uma mulher transexual, cuja existência e história foi trazida a público pelo trabalho do @projetoexistimos que deu voz à população trans e travestis em situação de rua. Jéssica que para “para poder ficar viva” mudou-se para São Paulo. Durante a pandemia perdeu seu emprego de cabelereira, e sem conseguir pagar aluguel, restou a ela as ruas da cidade de São Paulo. Ouvindo o depoimento de Jéssica, fui levada a canção Balada de Gisberta. Através de um amigo, conheci a dolorosa história dessa composição feita pelo compositor português Pedro Abrunhosa. A música faz memória à Gisberta, mulher transexual brasileira, residente na cidade do Porto – Portugal assassinada em 2006. A história da brasileira foi transformada em peça de teatro, em documentário e na canção Balada de Gisberta, interpretada lindamente por Maria Bethânia.
“Mulheres assim”: Quem foi a brasileira Gisberta, símbolo da causa LGBT em Portugal?
Gisberta Salce, imigrante brasileira de 45 anos, nascida em São Paulo, caçula de uma família com oito filhos. Ainda na infância dava sinais de que estava num corpo que não correspondia à sua identidade sexual e de gênero. Após a morte do pai, confessou à família, ainda na adolescência, que gostaria de ser mulher. Aos 18 anos, com medo da crescente violência contra transexuais na capital paulista, optou por se mudar para a França. Mais tarde, já depois de realizar tratamento hormonal e fazer implante de silicone nos seios, Gisberta mudou-se para o Porto, no Norte de Portugal. Rapidamente enturmou-se na cena gay local com seu talento e sua arte. Fazia apresentações de transformismo em bares e boates. A vida como artista, contudo, não gerava dinheiro suficiente para pagar as contas. Como complemento de renda, recorreu à prostituição. Gisberta, depois de contrair o vírus HIV, não teve condições de continuar trabalhando nos palcos e acabou tendo que sobreviver na rua. Sua moradia era um prédio abandonado das ruas da cidade do Porto, sobrevivendo em condições muito desfavoráveis para seu corpo e saúde debilitada. Ali foi encontrada por seus algozes: Um grupo de 14 adolescente entre 14 e 16 anos de idade que durante três dias: “agrediu Gisberta a pedradas, pauladas e chutes.” Ao retornarem ao prédio abandonado. O corpo de Gisberta não respondia a qualquer estímulo. Ao julgarem que estava morta, planejaram como desaparecer com o corpo. Primeiro pensaram em queimá-lo, mas desistiram por medo de que a fumaça atraísse a atenção de seguranças que trabalhavam num parque próximo. Depois imaginaram enterrá-lo, mas não tinham as ferramentas necessárias. Então, optaram por atirá-la ao fosso do prédio, que estava cheio de água. Gisberta estava inconsciente, mas ainda viva. Morreu afogada. Seu corpo foi encontrado no fundo de um poço de 15 metros.
Gisberta transformou-se em símbolo da discriminação múltipla: imigrante ilegal, transexual, prostituta, sem-teto e soropositiva. Seu assassinato causou um profundo impacto na sociedade portuguesa. Gerou o debate sobre a transfobia, mudou o olhar para as questões da igualdade de gênero. Abriu o caminho para transformações que garantiriam maior inclusão e direitos aos homossexuais e transgêneros. “O assassinato da Gisberta estabeleceu um antes e um depois em Portugal. Mudou a maneira como a sociedade olhava para as mulheres trans, mudou o modo como a imprensa cobria os transexuais, estimulou a criação de leis que tratassem da igualdade de gênero”. Não obstante , Portugal atualmente ser um País de alto índice de violência transfóbica.
O autor da música “Balada de Gisberta” se projeta no corpo no fundo do poço em seus últimos instantes, em meio a dores e a consciência do fim. Canta por toda uma vida de identidade negada, violentada e descartada: “Perdi-me do nome, hoje podes chamar-me de tua”. Gisberta carrega a voz de uma multidão de corpos trans marginalizados, que servem apenas “para dançar “nos palácios” da falsa moral sexual heteronormativa. Seu corpo serviu “a mil homens na cama”. Homens que logo depois a descartam, agridem e condenam. A canção termina com um grito vindo do fundo do poço (bermas da estrada) onde Gisberta foi forçada a viver e morrer: “Trouxe pouco, levo menos. A distância até ao fundo é tão pequena. No fundo, é tão pequena. A queda. E o amor é tão longe…”
O amor é tão longe… Muito longe das mulheres trans no Brasil que é um dos países recorde em morte de mulheres trans. A misoginia projetada no corpo de mulheres trans é uma extensão do ódio às mulheres e a homofobia alimentado pela cultura patriarcal cristã que reproduz a voz dos homens religiosos, representantes da lei de pedra: “A lei de Moises manda que MULHERES ASSIM sejam apedrejadas”.
“Mulheres assim” apedrejadas pela leitura fundamentalista da Bíblia
Para cristãos e cristãs, a Bíblia como texto sagrado de fé, seria a Palavra de Deus que serviria para nortear a existência humana. Sabemos que a Bíblia reúne uma coletânea de experiencias de fé vividas durante um longo período. Essas experiencias de fé vividas foram guardadas na tradição oral, e somente muito tempo depois, passaram por um processo de redação escrita. Um processo de seleção posterior elegeu uma lista de textos, conhecido como cânon’ bíblico, conjunto de textos considerados inspirados. Tudo isso resultou no texto sagrado que chamamos de Bíblia. Essa Bíblia, reúne narrativas religiosas bem distintas, que vão desde uma teologia de justificação da guerra e a morte em nome de Deus, até a teologia da supremacia absoluta da vida e do amor como princípio de toda Revelação.
Ler e interpretar os textos bíblicos não é uma coisa simples. Precisamos do auxílio das ferramentas hermenêuticas. O fundamentalismo religioso afirma que Deus inspirou cada letra do texto bíblico, e, portanto, dispensa interpretação. A Bíblia interpretaria a si mesma. O literalismo e a leitura seletiva de versículos isolados do seu contexto acabam tornando a Bíblia, uma arma perigosa e mortal. A leitura fundamentalista seleciona passagens bíblicas que sirvam de pretexto para condenar pessoas, grupos ou práticas que consideram pecaminosas, enquanto, por outro lado, ignora ou relativiza outras passagens bíblicas. Por exemplo, seleciona textos que condenam o adultério, a homossexualidade, e faz vistas grossas para outros textos que condenam a opressão, a acumulação de riquezas, a omissão diante da injustiça.
A Bíblia é texto polifônico, comporta variadas leituras e interpretações. Tudo depende do coração de quem a lê. Penso que a leitura fundamentalista revela mais do coração de quem lê do que do próprio texto. É isso que constatamos no conhecido texto do Evangelho de João 8:1-11, uma mulher acusada de adultério é trazida até Jesus. Os escribas e fariseus trazem a mulher em uma mão e a lei de Moisés na outra. E disseram a Jesus: “A lei de Moisés manda que mulheres assim sejam apedrejadas. E tu, pois, o que dizes? Os escribas e fariseus liam o mesmo texto bíblico que Jesus, mas a partir de lugares muitos diferentes. O lugar a partir de onde os escribas e fariseus liam o texto era um lugar onde o amor já era longe, muito longe! E, onde o amor é longe, a Palavra de Deus torna-se pedra! Diferente dos escribas e fariseus, Jesus leu o texto a partir do princípio hermenêutico do amor. Há leituras que partem do pressuposto de que o amor é a grande vocação a que todos os seres humanos foram chamados por Deus. Assim, o amor passa a ser um tipo de “óculos” a partir do qual lemos a Bíblia. O princípio do amor pelo qual a Bíblia deveria ser lida e interpretada.
Os textos sagrados, lidos e interpretados longe do princípio do amor, torna-se em “lei de pedra” que violenta e mata. Foi embalado pelo princípio do amor que Jesus respondeu a provocação dos escribas e fariseus. “Jesus, inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo, (…) se levantou e disse: Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nesta mulher.” Jesus, assim reescreve, reinterpreta a partir do princípio hermenêutico do amor, e faz com que aqueles que traziam as leis de pedra na mão, saíssem um a um, olhando para si mesmo, e para o seu próprio coração. Jesus, fazendo uso da chave interpretativa do amor, escreveu na areia, no chão da vida onde habitam os corpos de “mulheres assim” apedrejadas pelo fundamentalismo religioso, mulheres acusadas de adúlteras, lésbicas, trans, negras, feministas… Para estas “mulheres assim”, Jesus escreve palavras de amor e acolhimento e, não de condenação. Nessa perspectiva, a Bíblia, lida a partir do princípio ético e hermenêutico do amor, contraria a leitura fundamentalista e propõe uma leitura capaz de inspirar e criar relações humanas mais justas e amorosas, deixando de ser usada como pedra que assassina corpos e existências para promover a vida! Que possamos aprender com Jesus, a ler a Bíblia para escrever baladas de vida e não de morte!
Balada de Gisberta (Maria Bethânia)
Perdi-me do nome
Hoje podes chamar-me de tua
Dancei em palácios, hoje danço na rua
Vesti-me de sonhos, hoje visto as bermas da estrada
De que serve voltar, quando se volta para o nada
Eu não sei se um anjo me chama, eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar
Eu não sei se a noite me leva. eu não ouço o meu grito na treva
O fim quer me buscar
Sambei na avenida. No escuro fui porta-estandarte
Apagaram-se as luzes, é o futuro que parte
Escrevi o desejo, corações que já esqueci
Com sedas matei, e com ferros morri
Eu não sei se um anjo me chama. Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar
Eu não sei se a noite me leva
Eu não ouço o meu grito na treva
E o fim quer me buscar
Trouxe pouco, levo menos
A distância até ao fundo é tão pequena. No fundo, é tão pequena. A queda.
E o amor é tão longe!
*Pastora batista e teóloga feminista.