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“A população não sabe de fato quem deu o golpe”

Irmão do ex-presidente Lula e histórico militante do movimento operário, Frei Chico avalia que o golpe contra Dilma Rouseff não foi "montado somente por brasileiros" e que "o povo não está bem informado, porque vivemos sob uma ditadura da mídia"; para ele, "Dilma foi tirada para que se implantasse um novo modelo, baseado nos valores do mercado financeiro e as grandes corporações", mas "Temer também está sendo usado, pois, no fundo, é um representante velado de grandes conglomerados industriais e comprometido com o capital especulativo financeiro"; sobre Lula, ele acredita que "quanto mais avançarmos em direção às eleições presidenciais, mais atacarão" o ex-presidente

Por Ricardo Flaitt, para o Brasil 247

Frei Chico. Este é o apelido de José Ferreira da Silva, histórico militante do movimento operário brasileiro e irmão do ex-presidente Lula. Nascido em 1942, aos 17 anos, quando trabalhou em uma empresa metalúrgica no bairro do Ipiranga, em São Paulo, teve seu primeiro contato com a luta em defesa dos direitos. “Procurei o sindicato para me informar sobre uma medida que não estava certa”, ressaltou.

Depois de perceber que existiam outros cidadãos que também buscavam seus direitos, ingressou no sindicalismo para ampliar sua atuação e, ao mesmo tempo, sua compreensão sobre as origens da desigualdade social e a complicada relação entre capital e trabalho.

Nesta entrevista, ele relembra o momento em que foi despertada a sua consciência política, a necessidade de participar do processo político do país e quando apresentou o irmão mais novo, Lula, ao movimento sindical.

Aos 74 anos, Frei Chico não encerrou suas atividades. Segue atuando como diretor do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos. Crítico e com uma percepção histórica afiada dos fatos, ele discute, nessa conversa, a atual conjuntura política brasileira, que “em muito se assemelha com os desdobramentos políticos depois do golpe militar em 1964”.

Confira:

247 – Em que momento você conheceu o movimento dos trabalhadores?

Frei Chico – Entrei para o movimento sindical quando tinha 17 anos. Na época, os encarregados da empresa metalúrgica Metalac, no bairro do Ipiranga, tinham trocado de horário e queriam que eu trabalhasse de sábado à noite. Aí procurei o Sindicato dos Metalúrgicos, onde fui orientado. Nessa época o Lula tinha 15 anos, trabalhava, estudava e cursava o Senai. Nós não tínhamos envolvimento com o movimento sindical. Eu, de fato, só entrei mesmo, comecei a participar a partir dos 20 anos.

O que despertou sua consciência para participar do movimento sindical?

Era uma época conturbada, havia a guerra fria, mas o que chamou a atenção mesmo foi quando eu li no jornal sobre o golpe que instaurou a ditadura militar no país. Aquilo foi um choque. Eu tinha 22 anos. Na época eu acompanhava a luta do Jango, que buscava implantar algumas reformas sociais e ficou claro que a elite brasileira não aceitava nenhuma reforma da qual ela perdesse algum privilégio.

Diante dessa situação, indignado, passei a frequentar mais o sindicato. Lá conheci pessoas que militavam no PCB, onde entrei nos anos 70. Depois fiz um curso de capacitação sindical com Miguel Huertas, encabecei uma ação na empresa em que trabalhava, na época, a Pontal, com 20 e poucos anos de idade, liderando mais de 200 companheiros na luta por direitos. Fui mandado embora, mas aí sim entrei de vez a participar ativamente no movimento operário.

Foi você quem apresentou o movimento operário a Lula?

Sim. O Lula trabalhava na Villares, em São Bernardo do Campo. Isso aconteceu em 1965. Eu já estava participando do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo. Sempre chamava o Lula, mas ele não queria ir, mas nós morávamos juntos, éramos solteiros, e duas vezes o levei para participar. Nesse período, fato é que Lula não se interessava pelo movimento, ao contrário de mim, que tinha feito curso e ampliado minha visão sobre o pensamento de esquerda, mais voltado para a compreensão de um mundo mais humano, com menos desigualdade social.

Você lhe deu um livro que o influenciou bastante. Qual foi?

Foi o livro “Que é Constituição?”, de OIsny Duarte Pereira, livro que comprei em um sebo, na rua Aurora, e que tratava sobre como são elaboradas as leis. Li, achei interessante e passei para ele. Foi importante, porque depois o Sindicato dos Metalúrgicos do São Bernardo do Campo estava montando a chapa para concorrer às eleições. Eu apresentei Lula ao Paulo Vidal, que topou colocá-lo na diretoria. Fato curioso é que o Lula, em um primeiro instante, não queria participar. Também influenciado por Lourdes, sua primeira esposa, e a nossa mãe, que consideravam o movimento operário muito perigoso. E realmente era perigoso. Depois de muita conversa nós o convencemos a participar.

Você já enxergava nele o grande líder que um dia se tornaria?

Não. Na época o Lula era um cara que sempre aglutinava pessoas, sempre tinha gente ao lado dele, mas não a ponto de enxergar que um dia aquele jovem se tornaria uma referência para milhões de pessoas e chegasse à Presidência da República.

Quem manda nos países subdesenvolvidos? Os representantes das siglas partidárias ou o mercado financeiro?

Houve um período na História em que as grandes corporações produtivas é quem mandavam. Atualmente, é o mercado financeiro quem determina as regras do jogo.

É uma questão bem ampla, que envolve vários componentes. O poder do capital nas últimas duas décadas expandiu-se muito, a ponto de controlar os meios de comunicação, determinar o pensamento das pessoas, fazer com que elas “pensem que estão pensando”, quando, em realidade estão somente reproduzindo. A consequência desse processo é que os países interessados em acabar com qualquer política mais humana conseguem arrebentar com as democracias em nome dos seus interesses financeiros.

Um dos mecanismos das grandes corporações e do capital, que não tem pátria a não ser o lucro – para atingir seus fins é destruir qualquer quadro pensamento progressista, qualquer quadro de esquerda que possam contrapor as suas ideias. Se nos tempos tomadas de poder nos países da América Latina por meio das armas, via ditaduras militares, no atual contexto, as tomadas de poder acontecem por meio da mídia, do sistema de espionagem, do controle e manipulação da informação, que condena qualquer pessoa ao limbo, que julga antes mesmo de um trâmite de acordo com os trâmites estabelecido pela legislação.

Você acha que não há interesse das grandes corporações mundiais no pré-sal, em nossas reservas minerais, em nossa opulência natural, no montante de R$ 550 bilhões que movimenta a Previdência Social, dentre tantas outras coisas importantes para o Brasil, mas que para eles é somente lucro.

O que mais me espanta é que parte da elite brasileira, acompanhada da classe média, acompanha esse pensamento neoliberal, sendo que eles também serão subtraídos por essa mesma lógica do capital selvagem, que tem como princípio a concentração de renda. E nós, brasileiros, para esses caras, seremos sempre vistos como colônia.

Você vivenciou a implantação das ditaduras nos países latino-americanos entre as décadas 50 e 70. Em que ponto as ditaduras militares convergem com as atuais mudanças de governo na América?

Antes, como não havia tanto poder da grande mídia nas mãos como acontece atualmente, então tinha de ser à força, no fuzil, com tanques e repressão ferrada. Nos tempos atuais, a principal diferença é eles utilizam meios mais inteligentes: a mídia, dominam a mente, o pensamento, formam a opinião.

Para constatar o que disse, basta fazer uma pesquisa e relacionar quantos meios de comunicação foram criados nas ditaduras militares. Os principais veículos de informação que temos nasceram com o financiamento de grupos estrangeiros no período das ditaduras. Você pensa que isso é aleatório, mera coincidência?

Com o controle da informação, a consequência desse processo foi a implantação gradativa do modo de vida dos países regidos sob uma ordem capitalista, como único sistema possível para se viver, conceituando a felicidade e todos os valores por meio do consumismo, do individualismo e outros modos de vida que não condizem com os povos dos países dominados.

Outro desdobramento nefasto dessa dominação é que a história e a identidade dos povos vão sendo, gradativamente, apagadas.

A dominação, atualmente, é invisível, imaterial?

Dominar a mente das pessoas é a maior forma de dominação que se possa atingir, pois faz com que as pessoas, mesmo sendo exploradas, vivendo em péssimas condições, ainda aplaudem e defendem os seus quem gera toda a desigualdade, a miséria, os abusos, o corte de direitos, a precarização do trabalho e da vida.

Diante desses fatos, a verdade é que os movimentos de esquerda não se prepararam para enfrentar essa forma de dominação. A esquerda, e até mesmo setores democratas, iludiram-se, chegando a acreditar que seria possível estabelecer algum tipo de relação mais profunda.

Agora, sobre o atual momento do país, a saída de Dilma: foi golpe ou parte do processo democrático legítimo?

Foi um golpe montado não somente por brasileiros. A população brasileira não sabe de fato quem deu o golpe. O povo não está bem informado, porque vivemos sob uma ditadura da mídia, onde a informação é monopolizada e deformada. Mas, com o tempo, o povo saberá quem realmente aplicou o golpe. A Dilma foi tirada para que se implantasse um novo modelo, baseado nos valores do mercado financeiro e as grandes corporações.

O governo Temer estabeleceu como prioridades as reformas trabalhista e previdenciária. Elas representam um retrocesso nos direitos sociais ou, como defendem, um passo importante para a modernização do país?

Não existe modernização nessas reformas. O que eles querem é ampliar a exploração das pessoas por meio de um capitalismo ainda mais selvagem, que rompe com princípios básicos dos cidadãos, que foram conquistados com muita luta, ao longo de gerações.

As grandes corporações estão tentando legitimar um sistema em que o cidadão perderá quase todos os seus direitos, enquanto eles passam a não ser compromisso com nada. A reforma trabalhista, nos moldes propostos pelo governo Temer, representa o primeiro passo para atingirem seu objetivo que é chegar a um modelo laboral em que o cidadão será contratado por hora, sem direitos a férias, 13º salário, fundo de garantia, entre outros direitos essenciais.

Querem acabar com a nossa regulamentação, que assegura um mínimo de condições dignas, assegura direitos para os trabalhadores e tem forte papel na distribuição de renda.

Quanto à reforma da Previdência, quando se fala em instaurar a idade mínima em 65 anos, podendo chegar a 70 anos, isso é uma estupidez e retrata o distanciamento daqueles que elaboram as leis com a realidade, porque não existe esse mercado para pessoas com idades avançadas e ainda existe um problema com setores em que a limitação física do tempo não permitirá que a pessoa consiga trabalhar, a exemplo da construção civil ou nas linhas de produção, com tudo cronometrado e que as pessoas têm de ser comportar como robôs.

Temer também está sendo usado, pois, no fundo, é um representante velado de grandes conglomerados industriais e comprometido com o capital especulativo financeiro.

Para contrapor a essas medidas absurdas, a população tem de sair às ruas e manifestar democraticamente pela preservação dos seus direitos. Mas, para isso, é preciso que as pessoas tenham acesso à informação para saber o que está acontecendo, consciente de que essas reformas aniquilarão muitos direitos.

Um dos preceitos da reforma trabalhista é de que o “acordado” valha mais que “legislado”. Caso isso aconteça é, de certa forma, rasgar a CLT?

É mais do que isso. Por outro lado, não será fácil implementar, pois há um poder judiciário trabalhista muito forte no Brasil, que barrará algumas medidas que poderão levar o cidadão à condição de barbárie, aos tempos da revolução industrial, quando praticamente não existiam direitos e a exploração era extrema.

O movimento sindical faz o contraponto a essas políticas neoliberais?

O movimento sindical parece não compreender que o trabalhador tem de ser esclarecido diariamente sobre o que está acontecendo. As manifestações precisam acontecer antes que eles consolidem as mudanças no Congresso, que legitimem esse absurdo contra os trabalhadores, utilizando os mecanismos legais.

As eleições presidenciais acontecerão em 2018. E é inegável que Lula é um dos nomes mais fortes para a disputa. Diante disso, você acredita que os processos judiciários têm ligação com um receito de Lula voltar à presidência?

O que está acontecendo com Lula é muito mais político que jurídico. Para as elites, sem dúvida, Lula é uma figura a ser destruída, desmoralizada, demonizada, uma vez que ele representa uma alternativa humana frente ao modelo neoliberal que vende a ideia de que todos têm chances de ascender socialmente, no entanto, omitem as diferenças sociais, que cria distâncias e condições absurdas entre aqueles que moram nas periferias e os que desfrutam de todas as condições necessárias para o desenvolvimento. Ninguém é contra a crescer na vida, porém, fica a pergunta: com quantos pobres se faz um rico? E Lula é o contraponto do pensamento e do modo da exploração selvagem.

Diante disso, quanto mais avançarmos em direção às eleições presidenciais, mais atacarão Lula. Sinceramente, nem sei o que poderá acontecer, porque mesmo sem existir provas e todo o trâmite legal de uma ação, a mídia já condena a pessoa por antecipação, destruindo sua imagem, colocando a informação de modo que já foi julgada e condenado, sendo que não foi.

Nada disso é aleatório, é tudo pensando, programado. Mas o que deve ser duro para muita gente engolir é que Lula, mesmo sendo massacrado diariamente, ainda é um nome que desperta a esperança e representa uma alternativa no coração de milhões de brasileiros.

Qual o papel do movimento sindical nesse contexto?

O movimento sindical tem de unificar as ações, estabelecer uma pauta única, sem que haja vaidade, congregar personalidades, entidades, associações, cidadãos e todo setor social que é contrário a qualquer retirada ou supressão de direitos.

Lula será candidato em 2018?

Se ele resistir a tudo o que estão fazendo com ele, sim.
 

(*Agradecimentos aos historiadores Didô Carvalho e Ed Marcos.)

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