“CONSTRUINDO CAMINHOS DE TRANSFORMAÇÃO COM AS PERIFERIAS”
DEUS VISITOU SEU POVO
Por Rafael Rodrigues da Silva e Silva Souza*
O tema da XXII Assembleia Nacional do CEBI tem uma importância para os tempos que estamos vivendo e para a caminhada do CEBI e a Leitura Popular e Libertária da Bíblia. Três dimensões estão presentes neste tema e que exige reflexão, aprofundamento e ação: primeiro, no âmbito do lugar social, há que se perguntar pelo lugar social do CEBI: estamos com as periferias ou estamos nas periferias? Qual a função social da Leitura Popular da Bíblia? Segundo, no âmbito político, libertário e transformador, há que se perguntar pelos passos construídos no caminho para a mudança política e para a transformação. Que caminhos de transformação estamos construindo? Que transformações promovemos com as periferias (Mulheres, Crianças, LGBTQI+, Etnias Afrodescendentes e Etnias Indígenas, Sem-teto, Sem-terra, Desempregados e Desempregadas, Escravizados e Escravizadas, Encarcerados e Encarceradas)?. Terceiro, no âmbito profético, há que se resgatar a teologia da compaixão e a teologia política da luta pela dignidade dos oprimidos e da defesa das vítimas frente um sistema opressor, explorador e espoliador. Estas são três dimensões a provocar a caminhada do CEBI e o serviço da Leitura da Vida e da Bíblia para as Comunidades e para as pessoas empobrecidas enquanto sinais de libertação.
Nesta perspectiva o texto bíblico iluminador e provocador para nossa reflexão e aprofundamento vem das lembranças, memórias e vivências das comunidades lucanas nas periferias das sociedades gregas e helenizadas. Vamos caminhar neste processo de construção da Assembleia Nacional iluminados por Lc 7,11-17.
Em seguida, Jesus foi a uma cidade chamada Naim. E seus discípulos e uma grande multidão o acompanhavam. Quando Jesus se aproximou da porta da cidade, levavam para fora um morto, filho único de uma viúva. E uma multidão da cidade acompanhava a viúva. Quando a viu, Jesus encheu-se de compaixão e lhe disse: “Não chore”. Aproximou-se, tocou no caixão, e os carregadores pararam. Então disse: “Jovem, eu lhe ordeno, levante-se”. O morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe. Todos ficaram com muito medo e glorificavam a Deus, dizendo: “Um grande profeta apareceu entre nós. Deus visitou o seu povo”. E essa notícia se espalhou pela Judeia inteira e por toda a redondeza (Evangelho segundo as Comunidades de Lucas 7,11-17).
Qual o trajeto de Jesus conforme a comunidade lucana? De 4,14 – 9,50 Jesus percorre a Galileia ensinando e curando, pois em 9,51 é dito que “tomou a firme decisão de partir para Jerusalém”. Ou seja, a narrativa traça de 9,51 – 19,27 o caminho para Jerusalém e de 19,28 – 24,53, a chegada a Jerusalém e o relato dos conflitos, a paixão, morte e ressurreição. Portanto, a narrativa que irá iluminar a nossa reflexão demonstra as ações de Jesus na Galiléia, começando na sinagoga de Nazaré, onde inaugura o seu ministério e ação junto aos/às pobres. A abertura de seu caminhar na Galileia para as comunidades lucanas se dá a partir da leitura do texto de Isaías 61,1-2 e sua interpretação com os que estão na margem da sociedade: viúvas, leprosos e estrangeiros. Na Galileia, Jesus interpreta as Escrituras, cura, provoca os fariseus e escribas, chama discípulos/as (não podemos esquecer as mulheres que fazem parte do caminho conforme 8,1-3), transmite a missão ao discipulado e ensina na planície (6,20-69).
“Quando terminou de falar todas essas coisas ao povo que o escutava, Jesus entrou em Carfanaum” (7,1). Ali curou o servo do centurião. “Em seguida, Jesus foi a uma cidade chamada Naim” (7,11). Duas cenas de cura depois do Sermão da Planície. Uma em Carfanaum e outra em Naim.
Carfanaum é uma antiga aldeia na margem noroeste do mar da Galileia. O seu nome em grego (Kapharnaoum) significa “aldeia de Naum” e conforme o Evangelho é aí que Jesus iniciou o seu ministério. Quanto a cidade de Naim, esta fica a sudeste de Nazaré (muitas vezes é identificada com o moderno vilarejo de Nein), seu nome quer dizer: “aldeia do consolo”, que em hebraico significa “ser agradável, beleza, amabilidade, encanto”. Ela está situada na região de Jezreel (como Nazaré) e reporta para os tempos antigos como uma vila marcada pela agricultura e de acordo com os interesses econômicos da época era uma vila muito pobre apesar da riqueza das plantações de oliveira, trigo, uvas e figos na região.
Podemos ver que Jesus andava pela periferia da Galileia e dali foi-se espalhando a Boa Notícia e levando as multidões ao seu encontro (Veja: 4,14.16.31.37.38.42; 5,1.3.15.19.29; 6,17-19; 7,1.9.11.12.24; 8,1.4.19.37.40.42. 45; 9,10.11.12.16.18.37.38; 11,14.27.29; 12,13.54; 13,14.17; 14,25;18,36.
19,3. 37). No relato da paixão tem três mo(vi)mentos: a multidão que o seguia (23.27) , a multidão junto com as autoridades que o condenam à morte (22,47; 23,1.4.18) e as multidões que foram assistir ao espetáculo e voltam batendo no peito (23,48).
Em 7,1-17, o caminho das periferias, do discipulado e das multidões, seja no acompanhamento de Jesus de Cafarnaum para Naim, seja de Naim para toda a Judeia, espalhando a todos/as a boa notícia; é espelho para as comunidades empobrecidas na Grécia entre os anos 70 a 80 d.E.C. Como vimos, o Evangelho segundo as comunidades lucanas faz afluir as multidões até Jesus, ou seja, ora uma multidão está acompanhando Jesus pelo caminho, ora Jesus vai de encontro a outra multidão que está na margem.
As comunidades nesta pequena cena trazem à lembrança uma mulher viúva a chorar a morte de seu único filho. Ao narrar os encontros de Jesus e com a viúva e seu filho morto e o encontro das multidões, apontam para a situação daqueles/as que estão na periferia. A sociedade daquele tempo nega direitos para mulheres, viúvas, doentes, órfãos, pobres e pedintes e os coloca na anonimato. Porém, o movimento das ações nesta cena faz com que a “multidão” perca seu anonimato e se transforme em anunciantes de duas dimensões importantes nas antigas tradições: a profecia e a teologia do êxodo enquanto teologia da compaixão. “Um grande profeta apareceu entre nós” e “Deus visitou o seu povo” se apresentam como o grande ressurgir da transformação para o vilarejo de Naim: o redescobrir a teologia e a tradição que dá identidade ao seu lugar: “Aldeia do consolo e da beleza”. A riqueza da cena da viúva junto com a multidão a levar o seu filho para ser enterrado aparece na ação de Jesus que “se compadece dela e lhe disse: Não chore” (7,13). O verbo ter compaixão/ter ternura (splagnizomai que traduz o verbo hebraico rähäm) aparece três vezes no Testamento Cristão para se referir ao ser humano: Mateus 18,27; Lucas 10,33 e 15,20 e oito vezes para se referir a Jesus: Mateus 9,36; 14,14; 15,32; 20,34; Marcos 1,41; 6,34; 8,2; 9,22 e Lucas 7.13. O verbo “chorar” no imperativo presente e logo após a negação (“Não chore!”) dá o tom da ação de Jesus que é mais que humana com aquela mulher que vem da periferia (viúva, pobre, sem filho e, consequentemente, sem a herança). Na cena não podemos ficar com uma palavra estática, de ordem e de um Jesus distante da vida. A cena evoca o abraço terno, o enxugar as lágrimas e o consolo que brota do útero/das entranhas.
Quando o texto evoca a memória da profecia e da teologia do êxodo como teologia da compaixão, faz a partir da ação de Jesus que restitui aquele menino para a sua mãe. “o morto sentou-se e começou a falar e Jesus o entregou (restituiu) para a sua mãe” (7,15). O texto de Lucas 7 utiliza a mesma expressão que está na Septuaginta ao narrar que o profeta Elias devolve a vida do filho da viúva de Sarepta e “o entrega/restitui à sua mãe” (1Rs 17,23). Tudo indica que as comunidades fazem uma releitura das profecias que sobreviveram na margem da sociedade, sobretudo, as profecias andarilhas e curandeiras ao redor de Elias e Eliseu.
Nas periferias, Jesus e as comunidades não devem estar preocupadas com os rituais de pureza, com os costumes que separam e distanciam e nem tampouco com as religiões que sobrevivem sobre cadáveres e corpos violentados e mutilados. Mas deve caminhar para promover rupturas e transformações. Há um grande silencio na cena sobre a vida na periferia sobre as condições da mulher e seu filho, sobre a cidade de Naim e a multidão que segue o cortejo fúnebre. Esta mulher vivia de que? O filho morreu do que? O que será desta mulher sem filho naquela sociedade patriarcal? Tendo o filho vivo nos braços, o que muda para esta mulher naquela sociedade patriarcal e androcêntrica? Muitas perguntas ao redor da mulher silenciada na cena e que no fundo são perguntas que o Evangelho escrito conforme a memória e a leitura da vida, fez para os seus dias marcados por violência, morte, exploração, abusos, roubos, entre outros crimes.
A desconstrução da cena deve partir justamente do silêncio sobre a mulher de Naim. O seu choro foi impactante e provocador. Da compaixão à transformação.
O que a narrativa construída pelas Comunidades Lucanas tem a dizer para o CEBI em seu caminhar e no seu serviço e compromisso transformador com as periferias?
Qual o lugar social do CEBI e do serviço da Leitura Popular da Bíblia?
Quais os silêncios que estamos encontrando/identificando nas periferias?
Que rupturas estamos fazendo com os modelos, sistemas e organizações da sociedade que silenciam as periferias?
As comunidades lucanas descreveram o caminho transformador de Carfanaum à Naim e daí para outras aldeias e que caminhos de transformação estamos construindo? Com quem? Como? Quais processos e passos? De onde e para onde?
Que CEBI queremos e estamos construindo com as periferias sociais, étnicas, culturais, sexuais, políticas, econômicas, religiosas e eclesiais?
Que boas notícias trazemos das periferias?
Que boas notícias iremos levar para as nossas periferias?
Como estamos a partir da Leitura Popular da Bíblia fazendo acontecer a profecia e a teologia da compaixão e ternura?
Venham todas e todos animados/as para a Assembleia Nacional do CEBI, fazendo brotar do chão de nossa gente as reflexões, as memórias do caminho, as provocações de nossas periferias , de modo que sejamos cada vez mais sinal de libertação e de construção de caminhos para a transformação.
Estimados/as irmãos/ãs desde seus espaços aprofundem o tema e as questões, produzam reflexões, cantos, símbolos, poesias à luz de Lucas 7,11-17 para serem partilhados no momento de estudo e reflexão em nossa XXII Assembleia Nacional. A contribuição de cada um/a é fundamental para a construção de caminhos de transformação com as periferias e de resgate da profecia e da teologia da compaixão e da ternura em nossas práticas
Até lá!
*Rafael Rodrigues é assessor e da direção nacional do CEBI
** Silvia Souza é biblista popular e integrante do CEBI/PE, do Conselho Nacional do CEBI (Triênio 2018-2020). É bacharel em Comunicação Social.