Por Kinno Cerqueira*
Tenho a impressão de que a Bíblia é o livro menos lido no mundo. Alguém que esteja em posse de certos dados estatísticos dirá, com toda razão, que incorro num contrassenso. Afinal, a afirmação de que a Bíblia é o livro mais vendido, distribuído e lido no mundo tornou-se proverbial em nosso tempo. E os colportores incumbidos de salvar o mundo orgulham-se do sucesso de seu trabalho…
Que significado os estatísticos e colportores dão ao verbo ler? O mais simplório (im)possível, é claro. Absolutamente seguros de sua insuperável precisão conceitual, nomeiam de leitura a reprodução mecânica da combinação dos sons silábicos que compõem as palavras do texto bíblico. Vamos rir ou chorar? Vocês decidem.
Há duas circunstâncias que frequentemente levam uma pessoa a entrar em contanto com a Bíblia. A primeira é quando um evangelista/catequista lhe oferta uma Bíblia durante um processo de investidas proselitistas. A segunda se dá quando alguém, rompendo com o cristianismo de tradição católica, adere a uma igreja protestante, onde recebe uma Bíblia ou é aconselhado a comprar uma.
Nos dois casos, a Bíblia já aparece lida e interpretada. No primeiro, a pessoa recebe a Bíblia como signo da verdade absoluta à qual é interpelada a submeter-se. No segundo, como Palavra de Deus que lhe é dada como sinal de sua supremacia frente a quaisquer expressões religiosas que ocorram fora do limiar de sua nova igreja.
Não raras vezes, apresenta-se um “plano de leitura” para que, no decurso de um ano, as pupilas crentes conheçam a verdade absoluta, nas filigranas, da primeira à última página, sílaba a sílaba. O critério para aferir a precisão da leitura é o grau de concordância entre esta e a nefasta obtusidade do pastor da igreja. E assim a leitura acontece, com aquela liberdade que é tão própria de marionetes sob mãos de marionetistas.
A minha proposta é que, a partir de hoje, não se diga mais que a Bíblia é o livro mais lido no mundo. Não se exasperem comigo, senhores estatísticos, colportores, evangelistas e pastores, pois eis que lhes proponho uma alternativa mais honesta: a Bíblia é o livro mais silabado do mundo.
Ler é um ato hermenêutico, ou seja, um processo interpretativo, e a liberdade lhe é condição de genuína realização. Hipotecar a liberdade hermenêutica em função de uma leitura “correta” é o mesmo que vendar os olhos para não errar o caminho. Hipotecada a liberdade e vendados os olhos, resta fiar-se em decisões alheias.
A leitura ocorre quando o leitor se assume como sujeito, isto é, quando o leitor se emancipa em relação ao discurso do outro, libertando-se da condição de subalterno, abjeto, dejeto. A leitura crente, que não passa de uma insossa silabação, é um processo de afirmação da subalternidade, de adesão à obtusidade, de embrutecimento do espírito, de suspensão do pensamento próprio, de sacrifício das retinas no altar da obediência.
Até quando se levará adiante tamanha brutalidade psíquica? Até quando se torturarão as subjetividades sob o signo da Bíblia? Até quando quisermos. Até quando dissermos que basta. Até quando retirarmos nossas cabeças de debaixo das solas que nos esmagam. Até quando a rebeldia nos for mais doce que a obediência. Até quando nossos olhos amarem mais a policromia do mundo que o preto e branco da religião. Até quando ler for um salto de liberdade nos abismos do espanto poético, da beleza que redime, da vida que se reticencia… Até quando a ninguém for dada a última palavra.
* Pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) para a área de estudos bíblicos.