Por Ivone Gebara*
Muitos países, e entre eles o nosso, têm afirmado em sua Constituição que são ‘estados laicos’. A palavra ‘laico’ aqui significa que assumimos a laicidade como decisão política e, portanto, as religiões não deveriam interferir nas leis e políticas brasileiras. A palavra laico, etimologicamente tem a ver com a palavra grega LAÓS= POVO e, é usada aqui com um sentido preciso, ou seja, como opondo-se à interferência de uma religião nas políticas de Estado.
Por exemplo, uma religião não poderia impor ao Estado brasileiro que ‘não se coma carne na Sexta-Feira Santa’ ou que o dia de Iemanjá seja feriado nacional ou que no mês de Ramadã todos façam jejum como os muçulmanos.
Esta explicação simples parece razoável e compreensível à primeira vista. Porém, na prática nos enfrentamos com muitas dificuldades, sobretudo em relação ao Estado brasileiro e as muitas denominações cristãs. E isto porque não só as religiões influenciam nossos comportamentos, mas porque desde a colonização do Brasil houve a aliança e, em consequência, a ingerência do catolicismo tanto no processo de colonização quanto na República. Os missionários ajudavam os colonizadores na posse da terra brasileira e na dominação dos povos indígenas. O catolicismo era a religião dos reis de Portugal e Espanha e então as colônias conquistadas deveriam ser também católicas. Vivemos ainda esse processo agora alargado pela diversidade do protestantismo presente no meio de nós e bem presente na vida das bancadas religiosas em nosso atual governo.
A teoria nos ajuda a arrumar as coisas que no dia a dia são difíceis de compreender. E, como é o dia a dia que nos toca, precisamos nos debruçar sobre ele para entender o significado complexo de nossas ações e de nossas políticas.
A primeira coisa que precisamos ter presente é o quanto uma convicção religiosa influi no conjunto de nossa vida. Mesmo sabendo que outras pessoas não comungam dela, nossa tentação é sempre fazê-la valer nas diferentes circunstâncias de nossas vidas. Assim por exemplo quando dizemos ‘católicos por uma educação integral’ ou ‘evangélicos por uma educação integral’ ou ‘Deus acima de todos’ estamos introduzindo conteúdos religiosos que mesmo sendo genéricos acabam limitando nossa compreensão da sociedade a parâmetro religiosos. Cada grupo ou pessoa religiosa que utiliza sua religião num aspecto geral e até impositivo para outras não percebe que vivemos num Estado Laico pluralista.
Na prática deveríamos nos esforçar para não usar qualificativos genéricos sobretudo quando se trata de orientações gerais, mas usar uma linguagem na medida do possível clara e compreensível para a maioria. Por exemplo explicar o que estamos entendendo por ‘educação integral’ ou ‘Deus acima de todos’. De que conteúdos educacionais e de que imagem de Deus estamos tratando? É claro que sempre teremos sombras na linguagem e dúvidas em relação aos sentidos e às orientações políticas de nossos atos. Porém, o esforço de clareza é exigido cada vez mais nesses tempos em que cada um/uma nos julgamos saber melhor do que outros as direções do mundo. Uma atitude de simplicidade interrogativa é exigida de nós nesse momento parecido com a Torre de Babel, no qual as pessoas não conseguiam se entender, sobretudo por que não estavam atentas umas às outras, atentas as diferenças de linguagem, de significados e de expectativas. Quando a gente começa a aprender uma língua nova sempre reduz o sentido das palavras à equivalência em relação à nossa língua mãe. Compreendemos o outro apenas através de uma tradução incipiente, simplificadora e eliminadora das diferenças. Pouco a pouco quando nos aprofundamos no aprendizado da mesma língua vamos percebendo as diferenças e vamos sendo convidadas/os a conhecer outros mundos, outras formas de conhecimentos, outras expressões da mesma coisa ou de coisas parecidas. Assim também em relação a tudo o que vivemos.
Falar de Estado Laico significa aprender a conviver com os diferentes sem no entanto impor uma visão como sendo superior ou fundada em crenças religiosas específicas. Esse é apenas o começo de um processo que precisa ser continuado e aprofundado.
*Ivone Gebara, nascida em São Paulo, viveu em Pernambuco por 34 anos e está de volta a São Paulo. É filósofa e teóloga ecofeminista e membro da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. É autora de livros e artigos na perspectiva ecofeminista.
Artigo publicado no Portal das CEBs