De Aparecida para Roma: o documento-base do programa de governo do papa argentino que culminou numa reforma universal
Mirticeli Medeiros*
Foi no nosso país que o papado de Francisco começou, podemos assim dizer. No dia 13 de março de 2013, data da eleição do primeiro pontífice latino-americano da história, Jorge Mario Bergoglio, testemunhamos a coroação de um projeto.
E não estamos falando de um complô para eleger um “papa progressista” nem de outras baboseiras conspiratórias que surgem por aí. Chamamos a atenção para um modelo de Igreja, que começou a ser plasmado em Aparecida, e chegou a Roma através da escolha de Francisco.
Os cardeais reunidos no conclave, naquele ano, provaram que a mensagem de Aparecida poderia perfeitamente ser proposta para o resto do mundo, pois os diagnósticos levantados, no fim das contas, refletiam muito mais a realidade do catolicismo em geral que de um território específico.
Basta lembrarmos que Bento XVI, naquela época, já falava sobre a necessidade de uma nova evangelização. E se falamos de ‘nova evangelização’, nas entrelinhas admite-se que a catequese precisa ser renovada dentro de um cenário no qual o cristianismo, cada vez mais, perde espaço. E por que perde espaço? Porque a essência da fé cristã se reduziu a puro ritualismo? Porque os cristãos não difundem o amor pregado por Cristo? A religião tornou-se uma confraria de perfeitos, onde se faz acepção de pessoas? Sem dúvida, são perguntas que ecoam muito antes de Francisco assumir o governo da Igreja.
O ano era 2007 e o arcebispo de Buenos Aires, que 6 anos mais tarde passaria a ocupar o trono de Pedro, era o chefe da comissão de redação do documento conclusivo da Assembleia da Conferência Episcopal dos Bispos Latino-Americanos e do Caribe (Celam)
Sim, tudo começou na cidade que abriga a imagem da padroeira do país. E isso é muito significativo. Aos pés da santa, os prelados se comprometeram a pensar numa Igreja que não se aparta dos desafios do mundo, mas procura compreendê-los.
Foi lá que temas como “ir às periferias existenciais”, a questão ecológica e tantos outros com os quais acabamos nos familiarizando, começaram a ser refletidos com mais força. Havia já, entre os bispos latino-americanos, a preocupação de “humanizar mais” a pastoral católica, de promover o desenvolvimento humano integral e de chegar às pessoas não através pela imposição de uma doutrina, mas pela ‘revolução da ternura’, como o pontífice atual gosta de enfatizar. Como ocorreu no Vaticano II, era hora de pensar numa estratégia pastoral, numa força-tarefa para repropor o cristianismo numa sociedade que não quer mais saber dele.
E essa é a parte que nos toca. A América Latina, tanto aos olhos de Roma, como de quem realmente acompanha o movimento que ocorre na Igreja nos últimos anos, é vista como o território onde o Concílio Vaticano II teve maior repercussão. Não que, entre nós, tudo ocorra da maneira mais perfeita possível, mas é certo que existe uma sensibilidade maior frente às propostas levantadas pela última grande assembleia ecumênica da história. Basta vivermos na Europa para constatarmos isso.
Não à toa, o último sínodo, que já é considerado uma continuação do Vaticano II, conta com muitos latino-americanos na sua comissão teológica.
Aparecida, portanto, volta e meia volta a ser reproposta. É o que anda acontecendo, por exemplo, na assembleia geral do CELAM. O documento dos “discípulos e missionários” ainda é, para os latino-americanos, uma lista de diretrizes que deverá, volta e meia, ser revisitada. É aquele aquele livro de cabeceira do qual nunca a gente nunca pode se apartar.
A primeira viagem internacional de Francisco – por doce ironia do destino, ou não – foi justamente ao Brasil, em 2013. No nosso país, sabendo que falaria ao mundo, que naquele momento era representado por milhões de jovens, o santo padre fez um “evangelii gaudium” muito antes de lançar um documento com o mesmo nome. Disse sobre a necessidade de haver bispos com cheiro de ovelha. Falou da igreja que “não tem medo de se sujar” para ir ao encontro das pessoas.
Uma nova visita ao Brasil, por parte do pontífice, não está completamente fora de cogitação. Ele disse que poderia fazer isso antes de ir à sua terra natal, Argentina. Será que ele vai voltar à Aparecida para agradecer a Maria por tê-lo conduzido nesse caminho ousado de instauração de uma reforma, cuja repercussão se sentirá nas próximas décadas? É o que vamos ver.
*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.
fotografia:Papa Francisco em encontro com populações indígenas em visita ao Brasil (AFP)
Fonte : Portal Dom Total