Por Marcos Monteiro*
Entre o otimismo e o pessimismo das análises, os tanques de 10 de agosto passaram sobre os nossos corpos e nem percebemos. A tanquiata foi organizada com finalidades diversas, ou sem finalidade: uma bizarra e “trágica coincidência” de um governo competente em bizarrices e “coincidências”, ridículas e trágicas. Os tanques e o governo serão muito provavelmente esquecidos rapidamente na lata de lixo das memórias, nessa sociedade de um espetáculo que nos entretém passageiramente, enquanto a crueldade do neoliberalismo destrói fronteiras e trincheiras de modo permanente.
As reações imediatas nas redes e nas mídias foram sobre quem ganhou; e o número imenso de charges e ridicularizações sobre os tanques que tentaram ameaçar nossas instituições conseguiram transformar, na nossa consciência imagética, uma manobra militar em chacota. As instituições venceram os tanques e a dignidade arquitetônica dos três poderes continua sólida: a decisão mais importante da nossa história parlamentar recente, se o voto eletrônico terá ou não comprovante impresso, consolidou a vitória de um congresso que nunca se intimida. Então, a mídia aliviada pode no outro dia celebrar e eleger um novo assunto, como o retrocesso do sistema eleitoral.
Mas, sem nenhum medo dos tanques, ou do congresso ou da constituição ou do povo, a MP 1045 foi aprovada com avassaladora votação e este foi o verdadeiro tanque que passou por cima dos nossos corpos. Não percebemos e a mídia e redes sociais estabeleceram uma cortina de silêncio diante do cinismo de mais uma medida que retira mais direitos presentes e futuros da massa de trabalhadores em clima de pauperização sistemática. Entre outras coisas, a possibilidade de contrato de trabalho com metade do salário mínimo, sem direito a férias ou décimo terceiro ou nada mais, foi decidida na calada da noite, enquanto os tanques se moviam. Como sempre, essa precarização do trabalho é colocada como medida generosa de auxílio, inevitável e para o bem do nosso povo.
Engraçado, em números absolutos a medida apoiada pelo presidente ganhou, o que significa entre outras coisas que um impeachment, tão desejado, será algo muito complicado porque o centrão, ávido por vantagens, mostrou-se capaz de continuar se movendo, à mercê de benesses, o que a máquina governamental tem mais capacidade de oferecer do que outras forças parlamentares atuantes. Então, de certo modo, a derrota da proposta foi também uma vitória paradoxal do presidente que vê praticamente assegurado o cumprimento do seu mandato, embora uma reeleição pareça estar fora de cogitação, como também um golpe militar. Até porque o tanque do capitalismo neoliberal não parece precisar desses dois anseios do presidente.
Nesse caminho de reflexão, lembrei de duas coisas. De Jânio Quadros e de um texto bíblico, claro que com algumas ou muitas diferenças. Jânio quadros era perito em produzir diversionismos, com muito maior habilidade semântica e consciência política. Capaz de seduzir a massa de trabalhadores, com um discurso conservador moralista, e de criar uma política internacional independente, chegando a condecorar Che Guevara em plena guerra fria, foi ao mesmo tempo subserviente às diretrizes econômicas dos Estados Unidos. Incapaz de cumprir promessas de campanha, em conflito com o congresso e com apoiadores, imaginou um golpe militar imediato, o que não aconteceu, mas que quando aconteceu não precisava dele ou de seu populismo narcisista duvidoso.
O texto bíblico considero um dos mais enigmáticos sobre as palavras de Jesus:
E, naquele mesmo tempo, estavam presentes ali alguns que lhe falavam dos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios.
E, respondendo Jesus, disse-lhes: Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas?
Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.
Lucas 13, 1-3
Diante desse texto, penso não somente na bancada evangélica, como na ramificada estrutura de cristãos que apoiam os tanques bélicos, políticos, econômicos e culturais. Uma estratégia capitalista neoliberal com os agravantes misóginos, racistas, homofóbicos, de violência física e ideológica encontra forte ressonância em nossas comunidades cristãs. Não percebemos que os tanques que ameaçam as instituições ameaçam também os nossos corpos, nem que as próprias instituições são também ameaçadoras. Admito que as nossas comunidades de fé são também agrupamentos de acolhida e de apoio ao crescimento emocional, mas nem sempre e não para todas e todos. De certo modo, confundimos a mensagem da cruz, a qual é um convite a uma luta evangélica radical, com inércia e subserviência institucional masoquista. Se não nos arrependermos, os tanques continuarão a passar sobre os nossos corpos, entre améns e aleluias.
Recife, 13 de agosto de 2021.
*Do grupo de pastores da Primeira Igreja Batista em Bultrins (Olinda-PE) e colaborador do CEBI Pernambuco