Por Erminia Maricato*
O Brasil passa por uma crise política, econômica, social e ambiental. Mas talvez seja nas cidades que essa crise alcance o maior nível de dramaticidade, dado o número de brasileiros profundamente afetados por ela. Dos 207 milhões de habitantes, cerca de 84% moram nas cidades. Quase 1/3 desse total mora nas dez maiores metrópoles. O desemprego que atinge cerca 24 milhões de pessoas é maior em 13 capitais. A taxa nacional de homicídios alcançou 27,1 pessoas mortas para cada 100 mil habitantes, mas nas capitais é maior (36,4) e nos bairros pobres maior ainda.
Segundo o Atlas da Violência, em 2016, morreram 62.517 pessoas assassinadas. Na década foram 553 mil. De cada 100 mortos com arma de fogo, 71 são jovens negros. As vítimas têm cor nessa guerra de média intensidade, mas as mulheres também merecem destaque. Segundo a OMS, o Brasil é o quinto país em feminicídio. A maior parte das mortas são mulheres negras. Esses dados sociais e econômicos têm uma expressão territorial intrínseca.
Nas periferias, e também em algumas áreas centrais antigas das grandes cidades, há uma superposição de indicadores sociais e econômicos que escancaram um cenário dantesco e explosivo: baixa renda, baixa escolaridade, maior taxa de homicídios, maior taxa de feminicídio, maior número de favelas, maior informalidade no trabalho, maior taxa de desemprego, maior proporção de moradores negros e negras. A expectativa de vida do bairro paulistano de Guaianazes é de menos de 60 anos, e no luxuoso Jardim Paulista é de praticamente 80 anos. Mais de 20 anos separam o tempo de vida de moradores de diferentes áreas da mesma cidade, revelando que o ambiente construído não é um mero reflexo da condição social, política e econômica, mas uma instância ativa da promoção da desigualdade.
A cidade tornou-se um grande negócio e o preço da moradia varia de acordo com a localização e as características de cada bairro (que muda de acordo com o investimento público).
Por que as cidades são tão ignoradas nas análises da “grande política” ou da macroeconomia? Como diria Althusser, não se questiona a determinação em última instância da economia política sobre os destinos de determinada sociedade, na modernidade.
Por que tanto desconhecimento e invisibilidade sobre as cidades em nosso país?
Como pode ser negada, ou ignorada, a evidência físico-ambiental constituída pela concentração de milhões e milhões de pessoas cujo assentamento residencial se faz sem Estado e sem Mercado?
Em algumas metrópoles, essa condição é mais regra do que exceção. E lembramos ainda que essa precariedade inclui o “exílio na periferia”, no dizer de Milton Santos, dado o alto custo e a ineficiência (até a inexistência, especialmente nos fins de semana) do transporte coletivo.
A acentuada apartação social e urbana é necessária para manter essa extravagante desigualdade. A ausência do Estado social corresponde à presença do Estado policial. Uma polícia mal paga, que mata e morre, é necessária para manter a pressão insuportável para que tudo isso continue dentro da “normalidade”. As milícias (que administram verdadeiras cidades nas periferias urbanas e metropolitanas) e o crime organizado (que, no caso do PCC, inclui até mesmo ajuda às comunidades e certa previdência para os parentes dos “irmãos”) também são necessários para sustentar esse equilíbrio absolutamente instável.
Nos anos ‘80, a reconstrução da democracia no País passou, entre outras instâncias, pela disputa eleitoral dos governos municipais. Um processo participativo capilarizado foi construído em bairros, igrejas, escolas, sindicatos, com forte participação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Nas Prefeituras Democráticas foram desenvolvidas experiências muito bem sucedidas, que ficaram conhecidas internacionalmente, como o caso do Orçamento Participativo, os corredores de ônibus, os centros de ensino CIEPs ou CEUs (destinados a manter as crianças nas escolas em período integral com 3 refeições por dia, oferecendo aulas de esportes e atividades culturais nos currículos), os projetos habitacionais participativos marcados por boa arquitetura e preço baixo, a urbanização dos bairros periféricos e favelas com novas soluções paisagísticas de saneamento e drenagem, entre outras marcas importantes.
Acompanhando essas práticas vieram outras conquistas: a partir da Constituição de 1988 foi promulgado um arcabouço legal fantástico ligado às cidades: o Estatuto da Cidade, as leis de Consórcios Públicos, do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, do saneamento Básico, dos Resíduos Sólidos, da Mobilidade Urbana e Estatuto da Metrópole. Leis avançadas para uma realidade atrasada. Leis desconhecidas pelo próprio judiciário.
Apesar das conquistas legais e institucionais, as cidades vêm passando por uma regressão, nos últimos 10 anos (como mostram os dados de moradia, mobilidade, violência, etc.), que se aprofunda após o golpe de 2016.
Recuperar a democracia no Brasil passa por revisitar esse ciclo de conquistas importantes com participação capilar nas cidades, onde as pessoas vivem. Porém, para fortalecer a democracia local é preciso destacar algumas condições:
Erradicar o analfabetismo urbanístico e o desconhecimento da realidade urbana não apenas entre os moradores, mas também na mídia e nas instituições (poder executivo, legislativo e judiciário);
Garantir o controle social sobre a gestão pública, através do aperfeiçoamento das ferramentas que aumentam a transparência sobre arrecadação, gastos, investimentos, contratos, etc.;
Investir recursos públicos de acordo com os indicadores (de necessidades) sociais e não de acordo com interesses de lobbies privados e frequentemente ligados à especulação fundiária e imobiliária, ou para circulação de automóveis;
Aplicar a função social da propriedade prevista na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores, para garantir cidades territorialmente mais inclusivas e ambientalmente mais sustentáveis.
A cidade dividida, explosiva, insegura, insustentável não interessa aos 99%, que moram nela. A cidade cooperativa, solidária, diversa, humana, pacífica e criativa sim, interessa. A construção é longa, mas não temos escolha.
Perguntas Geradoras
- O que fazer?
2. Quais medidas ou propostas poderiam trazer a paz, a diminuição da desigualdade social e do sofrimento que marcam o cotidiano de grande parte da nossa população urbana?
3. Como contrariar a predação ambiental, além da social, que acompanha nosso processo de urbanização?
* Ermínia Maricato é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo, coordenadora do BrCidades, arquiteta, urbanista, professora, pesquisadora e ativista brasileira. É reconhecida por seu trabalho no campo do urbanismo e sua luta pela Reforma Urbana no Brasil
Artigo publicado no site da Semana Social Brasileira: https://ssb.org.br/noticias/cidades-inclusivas-e-ambientalmente-sustentaveis/
Foto: Rocinha, Rio de Janeiro (RJ) | Foto: creative commons