Por Fernando Altemeyer Júnor*
O discurso político está muito marcado por sofismas e demagogia. Faz séculos. Difícil fazer análise se as palavras estão corrompidas. O que um diz é entendido pelo outro passando por filtros. E muitas vezes são tradutores ideológicos de má qualidade e nada republicanos. Em São Paulo, todos agora falam de radicalismos. Além do “ismo” que já é inexplicável, usam radical para falar de extremos e a palavra quer dizer raiz, ou, algo que tenha seja profundidade e penetre no chão. Destroçam a palavra em praça pública. Lastimável e imoral. Aliás, por falar em moral e comportamentos, vale uma pequena análise dos resultados do último pleito que envolveu 5.570 municípios brasileiros (exceto Macapá que vive duplo apagão neoliberal de energia privatizada). O que podemos ver nas eleições de 2020, além da pandemia do COVID e o pandemônio dos bolsonaristas?
Imediatamente emerge a tensão entre moralismo abstrato e realismo político. De um lado o discurso moralizante que fala de virtudes ou dos vícios de candidatos/as pretendendo colocar as esperanças da transformação das cidades na moralização dos indivíduos, sem compreender os aparelhos de Estado, as instituições e os interesses das classes em conflito. Fala às pessoas destacando possibilidades subjetivas e individuais sem compreender os sistemas que governam a economia, a política e a cultura. Assim muitos votam em indivíduos que serão sufocados ou manipulados pelas máquinas estruturadas para manter a dominação capitalista. Esse discurso reduz a política à moral idealista. É claro que precisamos de vereadores e prefeitos/as éticos/as, mas é preciso desnudar o sistema para não ser aniquilado ou usado por ele como marionetes. No limite quem muito grita por moral acabará impotente diante dos pactos secretos dos empresários e empresas que comandam as prefeituras.
Na outra ponta temos aqueles que negam qualquer vínculo entre moral e política apelando para o realismo político. É a arte dos atuais grupos no poder, de direita, centro e esquerda. Dizem eles: política é a arte do possível. Predomina o egoísmo, a agressão, a compra, a demagogia e as fakenews gerando frases cada vez mais superficiais. O realismo político suprime a avaliação ética em nome da legitimidade dos fins. Agora incluindo até “Deus acima de tudo”. A mídia colabora com análises explicitamente marcadas pela manutenção dos que tem capital. Um em cada cinco prefeitos eleitos em vários estados é milionário. Boa parte dos eleitos para prefeituras e vereança é apadrinhada por ricos empresários. Os pobres participam para dar legitimidade, mas quem venceu foram os políticos e coronéis do DEM e Centrão. Os dois modos de conceber as relações entre ética e política geram patologias. A cisão ou confusão de espaços cria fundamentalismos e negacionismos crescentes. Os moralistas concentram-se em pautas privadas e de controle sexual, que não pertencem ao Estado, e querem impor visões parciais de seus grupos morais para toda a sociedade. Uma parte dos eleitores ao ouvir isso limpa as mãos e renúncia à política pelo absenteísmo explicito. No Brasil em 2020 deixaram de votar 23% dos eleitores/as. Na cidade de São Paulo foram 2.632.587 eleitores que não votaram, ou seja, 29,29% dos aptos a votar. Quase um terço não votou. E ainda entre os eleitores houve 10% de nulos e 5,87% de brancos. Total de quem não votou ou anulou: 45,27%. É de arrepiar qualquer democracia participativa. Crise total.
Os realistas se dissociam tanto da ética e da realidade do povo que não enxergam a fome, o desemprego, a falta de moradia e saúde e escondem números de infectados na pandemia e dos mortos de fome nas periferias. Acabam por fazer uma política cega, surda e muda aos clamores das maiorias. Sempre bem engomadinhos em favor das elites. Falam bem, mas suas palavras são ocas. Esses políticos profissionais negam a ética que gera vida, pois pretendem manter-se no poder custe o que custar. Isso explica a vitória em praticamente todo o Brasil dos grupos que detém o capital e o poder. Assim 2022 já tem candidatos dos ricos que se apresentarão como novos “Robin Hood”. Tudo como dantes no quartel d´Abrantes. Cinco séculos de colonialismo e dominação seguem com novos personagens e as velhas chibatas. E os pobres seguem votando cegamente em seus feitores. Vale recordar que na cidade de São Paulo ainda morrem a cada ano 11 crianças de cada mil nascidas. Existem 479.471 famílias em extrema vulnerabilidade que recebem o Bolsa-Família. A nova Câmara Municipal (55 vereadores) eleita no domingo será composta por 15 vereadores de partidos que defendem as causas populares e por 40 que defendem os ricos. Assim será o jogo para os próximos quatro anos. As maiores decisões contra o povo não serão televisionadas. Acontecem entre quatro paredes em favor das elites da cidade e dos banqueiros.
É preciso reconhecer que houve forte abalo ao discurso fascista da ultradireita, e certamente Bolsonaro perdeu em todo o Brasil de forma retumbante. Houve avanços das candidaturas das classes populares e das forças sociais emergentes, entre quilombolas, indígenas, LGBTs e mulheres. Serão vozes proféticas e resilientes? Saberão manter-se articulados aos movimentos sociais de onde são oriundos? Serão cooptados no primeiro mês ao receber salário e as benesses que nunca receberam em toda a sua vida profissional somada? O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, já lembrava o prestigioso Lord Acton. A verdade nua e crua é que o ministro Guedes e os bancos continuarão estruturalmente sugando o sangue dos pobres e enricando cada vez mais as empresas privadas. Esse é o poder real sem ética nem dignidade. O lucro acima de tudo e todos. Neoliberalismo idolátrico. E as vozes rebeldes e resilientes continuarão a bradar nas ruas e praças. Para cada distopia uma nova utopia subversiva nasce. Afinal, estamos na primavera!
Ainda há um novo voto em 29 de novembro para fazer avançar os partidos de esquerda em algumas cidades. Difícil prever os resultados. Tempo muito curto (15 dias) para discutir quaisquer temas relevantes. A mídia empresarial não irá permitir desnudar o rei.
Quantos prefeitos/as e vereadores cada partido fez no primeiro turno?
O Brasil tem 5.570 municípios. Os partidos PSDB, PP, MDB e DEM conquistaram o maior número de prefeituras nas cinco regiões do Brasil. No Sudeste, o PSDB elegeu mais prefeitos: 258. No Nordeste, a liderança é do PP, com 287 prefeituras. As regiões Sul e Norte tiveram mais prefeitos eleitos pelo MDB – são 258 no Sul e 110 no Norte. Já o DEM registrou o maior número no Centro-Oeste (100 prefeitos eleitos). PT conseguiu 179 prefeitos e 2.552 vereadores. PSOL terá quatro prefeituras e 89 vereadores.
Os partidos de esquerda somados comandarão 842 prefeituras e os de direita terão 4.566 prefeituras, com os resultados de 5.408 prefeituras no primeiro turno. Resta saber de mais 162 prefeituras de cidades com mais de duzentos mil eleitores. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/16/psdb-lidera-no-de-prefeitos-eleitos-no-sudeste-e-pp-no-nordeste-veja-dados-por-regiao.ghtml
O Brasil tem atualmente 57.823 vereadores. Os partidos de esquerda ou de perfil popular terão 10.867 vereadores e a direita terá 46.956 representantes nas cidades. Será um jogo de cartas marcadas e mais quatro anos de massacre impiedoso do neoliberalismo vigente. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/17/dem-pp-e-psd-aumentam-numero-de-vereadores-no-brasil-mdb-pt-psdb-pdt-e-psb-registram-reducao.ghtml
Quantos vereadores foram eleitos pelas igrejas pentecostais e particularmente pela IURD? O partido Republicanos, braço político da Universal fez 208 prefeitos/as e 2.601 vereadores. Um crescimento exponencial. Política manipulada descaradamente pela religião em todos os templos da Igreja.
https://apublica.org/2020/11/o-exercito-de-obreiros-da-universal-na-guerra-santa-por-votos/?bdf=w
Quantos vereadores foram eleitos com dinheiro das milícias e do narcotráfico?
Quantos prefeitos são efetivamente oriundos dos movimentos sociais?
Resumindo: não se pode renunciar à política em troca de moralismos, e tampouco excluir a ética em favor da política de interesses ou do realismo que mata os pobres e engorda os banqueiros. É hora de reinventar os espaços, os tempos e os projetos em favor da participação da sociedade civil. É preciso romper com o neoliberalismo cruel e genocida. De maneira radical ou efetivamente republicana (público é tudo aquilo que une e favorece a todos em uma cidade) será preciso trabalhar duro. Enquanto não houver ações articuladas e sistêmicas no coração da sociedade civil tudo será acompanhado de triste canção dos navios negreiros. Paradoxalmente sempre haverá quilombos e quilombolas.
https://www.youtube.com/watch?v=ojyql_8FqfA
* Filósofo, Teólogo, Doutor em Ciências Sociais, leciona na PUC-SP, escreve em revistas e periódicos sobre Teologia e Religião.