Por Pe.José Soares de Jesus*
O tempo da profecia não tem prazo e a vida do autêntico profeta e /ou profetiza segue a mesma linha, pois, estão sempre vivendo e anunciando a justiça de Iahweh em meio a muitas adversidades. Por isso, seguindo a direção do artigo passado, podemos afirmar categoricamente que quanto mais o cristão exerce a sua vocação profética fora dos muros e da segurança dos templos mais sentirá a dureza e a perseguição em sua vida.
Tomando como referência o primeiro testamento, sabemos que o fenômeno profético aparece com diversas expressões e significados: adivinho, vidente e até homem de Deus. Já a palavra ‘profeta’ é formado pelo substantivo ‘nabi’ em hebraico, derivado do verbo ‘naba’, que significa “profetizar, predizer, delirar, entrar em transe” e, tudo isso em função de sua árdua missão que é anunciar e receber a palavra e a bênção de Deus. Jeremias em muitas ocasiões desabafou o seu sofrimento por ter que receber a palavra de Iahweh e profetizar desgraças e infortúnios: Jeremias 14, 17 – 22.
O lastro com Jeremias pode nos ajudar a constatar uma realidade muito adversa no meio eclesial que é a existência de profetas e profetizas em nossas igrejas e comunidades. O clima é de apatia e profunda desconfiança na atualidade, quando os profetas que ainda teimam em resistir, falam contra o pecado social que fere os pobres, que degrada a natureza, que espolia os trabalhadores e trabalhadoras seja no campo ou na cidade. Nota-se também na atual conjuntura das igrejas e, sobretudo nas grandes celebrações, uma preocupação exacerbada com castiçais e velas e muitos suportes que embelezam o altar, mais retiram do nosso povo, o gosto pela palavra e sua força profética. Parece que instituíram um apartheid entre a palavra proclamada e a palavra que é celebrada e, como as duas realidades não devem se encontrar, a dimensão profunda de levar a provocação profética de clamor, denúncia, contestação e apelo por mudança, fica relegada a um segundo ou quarto plano.
Seguindo o caminho de Jesus, o profeta de Nazaré – cf. Mateus 13, 51–58 – podemos e devemos vencer a tamanha desilusão através de um olhar diacrônico e sincrônico da nossa história recente. No diacrônico, podemos elencar vozes que de dentro para fora de nossas igrejas gritaram a favor da vida e nunca abandonaram o rebanho a sua própria sorte. Olhando para a multidão foram capazes de dar comida aos famintos e proteger os sem teto e sem rumo, realçando e atualizando a preocupação de Jesus como em Mateus 14,16: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Foram vozes e corações sensíveis as causas sociais e humanitárias como a de Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, religiosas e religiosos, leigos e leigas que doaram seu tempo para confirmar perante a sociedade excludente sua opção pela vida. Outra figura profética e que completaria em 2020 cem anos é Dom José Vicente Távora[1], primeiro arcebispo de Aracaju – Sergipe. Ele, participou do Concílio Ecumênico Vaticano II – 1962 a 1965 – e, juntamente com outros bispos, tornou-se signatário do Pacto das Catacumbas. No ano de sua eleição – 1957 – dirigiu um discurso com força e sabedoria com as seguintes palavras:
“Quanto o vosso pastor deseja que essa paz e esses dons se encarnem na vossa vida, em cada um dos seres que vos são queridos e se estabeleçam no seio de nossa sociedade, para a fecundação desses bens que a nossa inquietude está buscando fixar. Penso em que a nossa Diocese é modesta, esquecida, pequena, mas penso, também em que ela poderia constituir uma grande família, mais unida, mesmo admitindo que essa união nem sempre pode ser perfeita, porque a condição humana traz consigo a contradição. Mas, se paixões existem, não somos necessariamente seus escravos. Elas desafiam nossas qualidades de equilíbrio, de capacidade para a coexistência pacífica. A oposição de idéias, mesmo políticas, não significa, necessariamente divisão definitiva, ruptura da fraternidade entre os homens. O vosso Pastor nutre, na mais pura aspiração evangélica, a esperança de vos ver dentro da Caridade Cristã que, somente ela, salva os povos” (NASCIMENTO, 2015, p. 30).
No espaço sincrônico da profecia, podemos afirmar que a carência de provocadores está presente tanto na cidade como na periferia, nos grupos que fazem a estrutura das paróquias – no caso dos católicos ou luteranos – e em outros segmentos religiosos. O aprofundamento das pessoas que estão ligadas a grupos bíblicos, nas CEBs, nas comunidades ligadas a grupos evangélicos e que seguem a metodologia do CEBI, para não deixar morrer o grito da profecia é intenso, mas a luta tem sido árdua e de muito desgaste, levando-se em conta o momento histórico e eclesial que vivemos. No campo ou nas pequenas e grandes cidades, existe uma preocupação intensa com a profecia e os desdobramentos que emanam da palavra. Os problemas sócio-ambientais, políticos e religiosos são gritantes e desafiam por demais os cristãos e cristãs. Temos que dirigir nosso olhar com mais afeição para as cidades e como trabalhar nesses espaços à ação profética e libertadora de Jesus.
Mexendo ainda nesta linha de reflexão, o grande e brilhante teólogo José Comblin assim afirmou sobre a cidade: “Como viver o evangelho na atual cultura pós-moderna que é a cultura urbana? Em lugar da paróquia, o centro da vida cristã será a pequena comunidade: lugar da iniciação, da formação, dos sacramentos, da educação, do discernimento moral, da preparação para o agir dentro da sociedade. A paróquia sobreviverá até que desapareçam os últimos representantes da antiga cristandade. Se não houver pequenas comunidades cristãs, as novas gerações farão toda a sua adesão às novas religiões — também na forma de neopentecostalíssimos católicos”[2]. Vê-se claramente que desafios não faltam e urge redescobrir o caminho de Jesus que se preocupava com a aflição do seu povo.
A profecia dos que não se calam pode renascer e deve fazer um caminho de profunda imersão na vida dos que labutam nas nossas cidades. Acompanhando o que ensina a Conferência de Aparecida, temos que tornar-nos a voz dos que não tem vez e voz. Habilitar nossa profecia como o traço que leva as pessoas ao Cristo e não a marginalidade e ao sofrimento. “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa dignidade Ele mesmo nos revela, surge nossa opção por eles” (DaP, 257). Temos que quebrar com a luz da profecia, as redes de exclusão a que milhares de homens e mulheres ficam expostos sem condição de trabalho, renda e/ou dignidade. Tamanho isolamento força-os a viverem na periferia com poucas condições de vida. Portanto, é nas adversidades que surgem os novos profetas que renovam a esperança do povo de Deus. São vozes das mais diversas procedências e que devem ser ouvidas pela contundência de seu testemunho, pois conseguem costurar de modo espetacular a vida com a fé. Por isso, comentaremos um pouco a profecia de dois homens iluminados e iluminadores do nosso tempo:
- a) Papa Bergolio: O profeta nunca se cala diante de tantas atrocidades. Por isso, constatamos de modo imperativo que o papa Francisco é o nosso novo Amós. Desde o dia de sua eleição até hoje, Francisco grita e age como verdadeiro profeta. Nas diversas frentes de combate está o papa Bergolio com sua palavra incansável e cortante destacando-se como o maior líder do século XXI. O Profeta Francisco de Roma e do mundo, utiliza com habilidade sua força de estadista para fazer ecoar sua profecia. Na política, por exemplo, tem se pronunciado com extrema pertinência e num seminário promovido pela Pontifícia Comissão para a América Latina – sobre a Doutrina Social da Igreja – declarou: “É necessária uma nova presença de católicos na política na América Latina”. E continuou: “As circunstâncias em que vivemos não mudarão de imediato”. São questões interligadas quando se fala em economia, religião e meio ambiente. O papa, por isso, adverte: “A política não é a mera arte de administrar o poder, os recursos ou as crises. A política é uma vocação de serviço”[3]. Francisco demonstra sintonia com os temas atuais e profunda linearidade com o magistério dos papas anteriores.
Para asseverar com acuidade uma frente, destacamos a luta de Francisco pelo meio ambiente. Exercendo com autoridade e simplicidade inigualável sua profecia, o papa deixou o mundo todo extasiado com a Laudato Si. Nela observamos que o profeta reclama duramente daqueles que exploram a mãe terra através do consumo exacerbado e coloca os pobres na beira da estrada da amargura e da exclusão. Sempre com pertinência conduz nossa consciência cristã a pesquisar sobre o magistério da Igreja e, com ele, mantem uma relação de profunda continuidade. “Espero que está encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente” (Laudato Si, 15).
- b) Frei Carlos Mesters, o profeta da palavra: nascido na Holanda em 1931, o Brasil teve o privilégio de receber este autêntico carmelita que navegando nas praias e trilhando pelo sertão afora, ensinou como rezar a vida e a bíblia, a bíblia e as lutas do povo de Deus. E, como a obra do profeta ninguém – nem reis, nem tronos, nem poderes temporais ou religiosos – consegue calar ou eliminar, podemos adentrar nesse caminho através da metodologia da LPB (Leitura Popular da Bíblia).
Cremos que está neste caminho a grande contribuição de Frei Carlos, conseguindo despertar no meio do nosso povo o gosto pela palavra de Deus – contida na sagrada escritura – e também a capacidade de alimentar as comunidades com aspectos inovadores da leitura bíblica, fazendo com que muitos e muitas se tornem protagonistas da própria caminhada espiritual e libertadora.
A LPB contém didática, metodologia própria, clareza, hermenêutica própria e consegue ser profunda sem ser racional e sem ser um portal de estudos de uma casta intelectualizada. Fomentando a beleza do que sempre Frei Carlos lembra – a partir da teologia agostiniana – o livro mais importante para o cristão e a cristã aprofundar não é a bíblia, mas, a vida. E sempre completa: a bíblia não foi feita para substituir a vida, mas para ajudar a entender a vida. Como homens e mulheres de uma “igreja em saída”, desejada pelo papa Francisco, vamos unir a LPB e o legado de Frei Carlos a um novo impulso missionário e profético. Tudo isso com a convicção que os profetas de Iahweh nunca se calam e estão sempre a serviço do reino e da vida para todos e todas.
Pe. José Soares de Jesus
CEBS – CEBI/SE
[1] O primeiro arcebispo de Aracaju, era pernambucano de Orobó. Nasceu em 19 de julho de 1910. Foi ordenado sacerdote em 1934 na cidade de Limoeiro. Migrou para o Rio de janeiro onde tornou-se bispo auxiliar de Dom Jaime Câmara até o ano de 1957. De lá, saiu nomeado para diocese de Aracaju – SE. Foi alçado à condição de arcebispo no pontificado do Papa João XXIII e, assim tornou-se o primeiro arcebispo de Aracaju em 1960 com a divisão da província eclesiástica.
[2] Revista Vida Pastoral: n. 225, p. 8-15. Desafios da Igreja na cidade atual. Padre José Comblin. https://www.vidapastoral.com.br/artigos/eclesiologia/desafios-da-igreja-na-cidade-atual/. Acesso: 5 de agosto de 2020.
[3]https://www.jornaluniao.com.br/noticias/geral/quota-politica-e-uma-vocacao-de-servicoquot-destaca-papa/. Acesso em 30 de jul. 2020.