Por Ariel O. Gomes*
Certa vez os “homens de bem”, guardadores da fé e da moralidade, questionaram Jesus sobre a pena para uma mulher acusada de adultério, que pela Lei de Moisés (no judaísmo, norma jurídica e religiosa) deveria ser apedrejada. Jesus não pareceu dar muita bola para eles, mas estes insistiram. Então, Jesus na sua maestria profética devolveu: “Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”. Não sobrou ninguém! Foram todos embora. Fazendo isso, Jesus expõe a falsa moralidade e a hipocrisia subjacente na interpretação fundamentalista que aqueles homens faziam da Lei.
Esse texto do Evangelho de João (cap. 8) não deixa claro, mas cabe-nos perguntar: E o homem que praticou o adultério junto com a mulher? Ele também deveria ser julgado, pois assim diz a Lei Mosaica no livro do Levítico 20,10.
Olha que curioso! Esqueceram de mencionar o homem que cometeu adultério.
Assim ocorreu essa semana com a menina de 10 anos, julgada como “abortista” e “assassina” pelos defensores da moral e dos bons costumes. Para a menina, condenação. Para o estuprador, silêncio!
Por falar em menina, outros trechos dos Evangelhos (Mt 19, 13-15 e Lc 18, 15-17) apresentam Jesus ensinado os discípulos(as) o quanto as crianças são a expressão mais apropriada da presença de Deus no mundo: “ Quem não receber o Reinado de Deus como uma criança, nunca entrará nele.” e “ O Reino dos Céus pertence aos que são semelhantes a elas.”. Logo, a proposta de Jesus é o acolhimento das crianças, dessa menina violentada, e não a da condenação e exclusão dela.
Enquanto esse tipo de cristianismo segue condenando mulheres, gritando em frente ao hospital, a postura de Jesus nos evoca uma cena de abraço gostoso e beijo carinhoso.
É trivial que encontremos dezenas e dezenas de passagens bíblicas demonstrando que a postura de Jesus seria a da acolhida, compaixão e perdão, sempre na defesa dos condenados(as) da Terra. Portanto, toda essa postura raivosa contra a menina, por parte de grupos cristãos, é sem fundamento e anticristã.
Em termos jurídicos não há nem o que discutir: o aborto para o caso é legal.
E, só isso não basta. Precisamos fazer a nossa imaginação sociológica funcionar, quer dizer, tentar ampliar a visão sobre o fato, avaliar o contexto e apontar caminhos para superação.
Uma breve busca por dados estatísticos nos leva à uma constatação aterrorizante: 180 casos de estupros por dia no Brasil.
O 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 registrou recorde da violência sexual. Foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2018, maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2007. A maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de até 13 anos. Conforme a estatística, apurada em microdados das secretarias de Segurança Pública de todos os estados e do Distrito Federal, quatro meninas até essa idade são estupradas por hora no país.
Os danos provocados já são bem conhecidos:
“Vítimas de estupro podem sofrer lesões nos órgãos genitais, contusões e fraturas, alterações gastrointestinais, infecções do trato reprodutivo, gravidez indesejada e a contração de doenças sexualmente transmissíveis. Em termos psicológicos o estupro pode resultar em diversos transtornos, tais como depressão, disfunção sexual, ansiedade, transtornos alimentares, uso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático.” (Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019).
O mesmo Anuário aponta que 75,9% das vítimas possuem algum tipo de vínculo com o agressor, entre parentes, companheiros e amigos. Sim, é razoável inferir que muitos destes que condenam a menina podem ter em suas famílias situação semelhante ou, na pior das hipóteses, ser também um agressor.
O que pode uma criança fazer quando quem deveria cuidá-la e protegê-la é quem a violenta?
Enquanto não levarmos a sério a educação sexual, essa realidade tende a piorar.
Educação sexual vai muito além de entender sobre reprodução e métodos contraceptivos. O objetivo é
“equipar crianças e jovens com o conhecimento, habilidades, atitudes e valores que os empoderem para: vivenciar sua saúde, bem estar e dignidade; desenvolver relacionamentos sociais e sexuais respeitosos; considerar como suas escolhas afetam o bem estar próprio e dos outros; entender e garantir a proteção de seus direitos ao longo da vida.” (Guia Técnico Internacional sobre Educação Sexual-UNESCO).
Precisamos conversar sobre tudo isso nas nossas casas, escolas, igrejas, clubes, associações. Precisamos conversar sobre masculinidade. O que não podemos é nos calar e consentir diante deste contexto.
Respeitar @ outr@ é necessariamente respeitar seu corpo.
Basta de estupro.
Não é não.
integra o CEBI Mato Grosso do Sul
Referencias:
13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/13-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/
International technical guidance on sexuality education. An evidence-informed approach. 2018. https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/ITGSE_en.pdf