Poderia vir alguma coisa de Nazaré? Mais uma escolha nada ortodoxa de Deus! Nascer do ventre de uma pobre mulher da cidade de Nazaré. Se essa encarnação estivesse acontecendo hoje, provavelmente, a jovem escolhida seria uma jovem preta periférica. Penso que a escolha de Maria de Nazaré se deu, não por ter sido ela, uma jovem especial ou privilegiada, mas, por ser uma Maria como tantas outras “Marias” da região periférica da Galiléia. Região estigmatizada, assim como são, estigmatizadas as populações periféricas espalhadas por nossas cidades. Uma gravidez nada ortodoxa! Achou-se grávida do Espírito Santo! Porém foi consentida! Maria, uma jovem nada ortodoxa, que aceitou ser parte de um projeto nada ortodoxo! Ela conhecia bem sua cultura e religião. Sabia dos riscos e perigos que essa gestação a submeteria. No entanto, corajosamente disse sim! Enfrentou o julgamento do homem com quem estava comprometida e o julgamento de toda cidade. O noivo José, planejou abandoná-la, mas depois, acabou por engravidar do mesmo sonho de Maria. Para fugir da acusação de adultério e apedrejamento, Maria teve que ficar refugiada nos primeiros meses de sua gestação na casa de sua prima Isabel, que também vivia uma gravidez nada ortodoxa! Ventres cheios de profetas e profecias nada ortodoxos!
Eram tempos virulentos assim como os atuais. A pandemia da violência e da morte crescia, assim como crescia o ventre de Maria. A criança já nasceu perseguida e marcada pelo sistema e pelo Estado. Assim como nascem os filhos pretos das periferias. Quando o menino cresce aumenta aflição da mãe. Nunca se sabe se ele volta seguro para casa. Maria, viveu essa angústia do primeiro ao último dia da vida do seu filho. A maternidade de Maria não foi romântica, assim como não é romântica a maternidade de mulheres pobres, periféricas que criam seus filhos e filhas sem as mínimas condições e garantias sociais e econômicas. O lema dessas mães é aquele que um dia eu vi grafitado em um muro da periferia da cidade de São Paulo: “Se nóis não é por nóis! Quem será contra nóis?” Penso, agora, em todas as maternidades vividas no tempo de pandemia e a vulnerabilidade social e econômica enfrentadas pelas mães trabalhadoras informais. As mães que trabalham nos serviços essenciais, sem quarentena, sem home-office! Não! Não podemos exaltar o dia das mães e a santíssima Maria, a mãe de Nazaré, e, ao mesmo tempo ignorar e ficar indiferente a existência e as lutas dessas mães e dessas “marias”!
A maternidade de Maria de Nazareth foi vivida entre dores e delícias. Mais dores do que delícias. “minha mãe recebeu a notícia que ela já esperava. Foi lá acendeu uma vela perto do corpo. (…) Só ela, a fumacinha, a mãe e eu ali, velamos o corpo do meu irmão”. Escopetas como facas afiadas brincam tatuagens, cravam fendas na nossa tão esburacada vida. Balas cortam e recortam o corpo da noite. Mais um corpo tombou (A gente combinamos de não morrer – Conceição Evaristo)
Perder um filho, assistir seu assassinato. Testemunhar sua condenação e sua execução como um bandido qualquer. O Estado, a Religião que deveriam proteger a vida do seu filho, foi quem ordenou a morte! Maria sabia desde o início que não geraria um filho para si mesma, para sua própria realização e redenção. Sua gravidez foi redenção da humanidade. Sabendo disso, ela transformou a dor em luta, em canção de esperança: “Minha alma exalta ao Senhor, meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou a humilhação de sua serva. Eis que de agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada, pois o Poderoso fez grandes coisas por mim. Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração para aqueles e aquelas que o temem. Ele agiu com a força do seu braço. Dispersou os arrogantes de coração. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e famintas, e despediu os ricos sem nada!”
Em Maria de Nazaré encerra a genealogia das mães nada ortodoxas de Jesus que se distingue de uma maneira importante das outras quatro mulheres. Nas outras mães, o homem é sempre objeto de ação: Abraão gerou Isaque … Judá gerou Perez de Tamar etc. As mulheres são mencionadas de acordo com o homem e sua história. Mesmo quando sua presença rompe com a estrutura patriarcal da invisibilidade das mulheres, elas ainda estão dentro de toda uma dinâmica patriarcal de organização das relações na família e na sociedade. Aqui a novidade aparece através de Maria: Ela não tem mais um homem como sujeito, mas uma mulher. Isso aponta para o colapso patriarcal “Jacó gerou José, o marido de Maria, de quem Jesus foi gerado” (1,16). Assim, o que nela gerado foi a partir da Ruah , do próprio espírito da vida! Por isso, o que Maria dá à luz não está a serviço de nenhuma estrutura patriarcal, não serve como instrumento de poder para legitimar mecanismos de marginalização, nem para apoiar hierarquias dominantes de pais, reis e senhores.
Por Odja Barros