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Mês da Bíblia: “Deus nos amou primeiro”

por Carlos Mesters e Francisco Orofino*

Neste ano de 2019, o mês da Bíblia tem como temaO Amor em defesa da vidae como LemaNós amamos, porque Deus nos amou primeiro (1Jo 4,19). O tema foi escolhido a partir da proposta pastoral do Documento de Aparecida para os anos 2012 a 2019: “Ser Discípulos Missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida”. Nos anos de 2012 a 2015, aprofundamos a primeira parte desta proposta: Ser Discípulos Missionários de Jesus Cristo. Agora, nos anos de 2016 a 2019, estamos aprofundando a segunda parte: para que nele nossos povos tenham vida. O tema central é a defesa da vida. Para cada ano foi escolhido um determinado livro para o Mês da Bíblia. Eis o esquema:

* 2016: a profecia em defesa da vida                      livro do profeta Miqueias

* 2017: a comunidade em defesa da vida              1ª carta aos Tessalonicenses

* 2018: a sabedoria em defesa da vida                   livro da Sabedoria

* 2019: o amor em defesa da vida                          1ª carta de João

O texto escolhido para iluminar nossas reflexões sobre “O Amor em defesa da Vida” é a Primeira Carta de João. Esta carta faz parte dos chamados Escritos Joaninos que incluem o Evangelho de João (Jo) e as três cartas atribuídas a ele (1Jo, 2Jo e 3Jo).

Época e objetivo da 1ª Carta de João

A Primeira Carta de João é bem diferente das cartas de Paulo e das demais cartas do Novo Testamento. Não existe nela uma indicação de data, nem um cabeçalho com os nomes dos remetentes, não menciona os destinatários, nem manda saudações ou lembranças. Por isso é mais difícil conhecer a sua origem e seu local de redação. A opinião mais provável é esta:  A 1ª Carta de João reúne vários trechos de uma homilia sobre a comunhão com Deus e com os irmãos. Como a linguagem é muito semelhante ao evangelho de João, é provável que a origem deste escrito tenha sido a comunidade de Éfeso, na Ásia Menor, onde uma tradição secular coloca a residência do apóstolo João. E a época seria a mesma do Quarto Evangelho, ou seja, no final do primeiro século, em torno do ano 100.

Pelo conteúdo da carta, percebe-se que ela busca responder a uma crise de fé que havia em alguns membros da comunidade. Havia neles uma insegurança quanto à maneira de entender e de viver a comunhão com Deus e com Jesus. Alguns não davam a devida importância à prática concreta da fé e do amor no dia a dia da vida e diziam que a comunhão consiste sobretudo no conhecimento intelectual (gnose, como se dizia na língua deles). Por isso, os que promoviam esta teoria eram chamados de gnósticos.

Os gnósticos ensinavam que a salvação vem por uma instrução ou iluminação superior. Eles defendiam o predomínio do conhecimento sobre a prática. A verdadeira salvação, assim eles diziam, vem pelo conhecimento intelectual e não por práticas de amor e de caridade. Esquecendo a prática do amor e da justiça, refugiavam-se numa especulação intelectual e viviam em busca das últimas novidades ou revelações espirituais. Deste modo, os gnósticos estavam criando uma divisão dentro da comunidade, separando-se dos demais (cf. 1Jo 2,19).

A maioria da comunidade, porém, achava que não basta só a gnose, o conhecimento intelectual. A comunhão com Deus e com Jesus exige gestos concretos de vivência e de partilha. Ao contrário dos gnósticos, a comunidade defendia que o verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo consiste em andar na luz de Deus, isto é: praticar a Palavra de Deus e amar os irmãos de maneira concreta, com gestos e ações de partilha (1Jo 3,17-18). A proposta da comunidade para enfrentar e superar o problema é a primeira Carta de João que estamos lendo e estudando como o livro do Mês da Bíblia neste ano de 2019.

O gnosticismo continua sendo um problema bem atual. Eis o que o Papa Francisco nos diz em seu documento Evangelii Gaudium: “O mundanismo pode alimentar-se, sobretudo, com o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjetivismo, em que apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da própria razão ou dos seus sentimentos” (EG 94). “Em alguns, há o cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da História. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio de uma auto-complacência egocêntrica” (EG 95).

Divisão e natureza da 1ª Carta de João

Trata-se de uma homilia de um único pensamento, verbalizado em três meditações, cujo objetivo é ajudar o leitor, a leitora, a discernir se está ou não está em comunhão de amor com Deus e com os irmãos. Eis a divisão da carta com suas três meditações:

1João 1,1-4: Introdução

1João 1,5 a 5,12: As três Meditações

1João 1,5 até 2,28: 1ª Meditação:  A palavra-chave é LUZ.

Estar em comunhão é andar na luz de Deus, vivendo a fé e o amor.

1João 2,29 até 4,6: 2ª Meditação:  A palavra-chave é JUSTIÇA.

Estar em comunhão é praticar a caridade e a justiça, vivendo o amor de Cristo.

1João 4,7 até 5,12: 3ª Meditação:  A palavra-chave é AMOR.

Estar em comunhão é viver o amor, pois Deus é amor e ele nos amou primeiro.

1João5,13-21: Complemento

1João 5,13-17: Ensina como rezar a Deus com confiança

1João 5,18-21: Síntese da carta

Cinco chaves para abrir as cinco portas da Carta

As cinco chaves são cinco palavras Amor, Jesus, Comunidade, Batismo, Gnose:

1. Amor. A frequência com que a palavra amor e seus derivados ocorrem na carta (mais de 40 vezes) faz perceber o eixo central da mensagem que João quer comunicar. É a vivência do amor: “Quem não ama seu irmão é um assassino” (1Jo 3,15).

2. Jesus. O modelo da vida cristã é Jesus Cristo. Já na abertura da carta, João deixa bem claro que o Cristo da fé não pode ser fruto de uma especulação intelectual, mas deve ser Jesus de Nazaré, pessoa histórica, bem concreta, aquele que “ouvimos, contemplamos, e que nossas mãos apalparam” (1Jo 1,1). Jesus não é um Cristo distante, longe de nós, nas nuvens. Mas é o Jesus de Nazaré, bem próximo, humano, de carne e osso, presente no meio de nós. Nós devemos seguir a este Jesus, que se tornou Cristo através da sua morte e ressurreição por todos nós.

3. Comunidade. Na comunidade da 1ª carta de João não se percebe organização nem jerarquia. Ela parece bastante livre e descentralizada. A pertença à comunidade se faz através da prática do amor. Nela existem aqueles que são filhos e filhas de Deus e que vivem semelhantes a Jesus Cristo no amor e na partilha. Mas existem também os perturbadores, os anticristos, os filhos do maligno, os que seguem o gnosticismo e estão dividindo a comunidade (cf. 1Jo 2,18). Na 2ª carta de João, a comunidade é chamada de “Senhora Eleita” (2Jo 1) ou simplesmente de “Senhora” (2Jo 5).

4. Batismo. A primeira Carta de João é uma catequese batismal. Mesmo não usando a palavra batismo, a carta alude ao batismo quando diz que Jesus “veio até nós pela água e pelo sangue” (1Jo 5,6). Como catequese batismal, a carta de João deixa bem claro qual o efeito do batismo na vida das pessoas. O batismo faz de nós filhos de Deus (1Jo 3,9);leva-nos a viver para Deus (1Jo 5,18); traz o perdão dos pecados (1Jo 2,12); é uma unção (1Jo 2,20) que nos leva a vencer o satanás (1Jo 4,4); nos faz passar da morte para a vida (1Jo 3,14) e nos leva a confessar que Jesus é o Filho de Deus (1Jo 4,15); ajuda-nos a reforçar os laços de amor dentro da comunidade. O fato de sermos filhos de Deus nos leva a não pecar (1Jo 3,6; 5,18). Mas a realidade humana mostra que somos todos pecadores, necessitados da graça de Deus e do perdão (1Jo 1,8-10). A carta chama os fiéis de “filhinhos” (1Jo 2,12) que vivem a vida numa comunidade quase caseira e familiar, e que se dividem entre “os pais” (1Jo 2,13.14) e “os jovens” (1Jo 2,13.14). Provavelmente, trata-se das duas gerações dentro da mesma comunidade: adultos e jovens.

5. Gnose. Alguns membros da comunidade consideravam as verdades da fé como um conhecimento superior (gnose), revelado a eles por um “espírito supremo” ou uma “inteligência suprema”. Este conheci­mento superior, assim eles diziam, purifica a alma e a liberta do corpo que a aprisiona. Por isso, os gnósticos desprezavam o corpo e a matéria. Apenas a mente espiritual ressuscitaria e entraria na luz. O corpo estaria destinado à corrupção e não ressuscitaria. É por isso que João e a comunidade cristã combatem a gnose e dão um enfoque tão forte à encarnação do Verbo e à ressurreição da carne. “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Pois nós cristãos não somos seguidores de ideias, mesmo perfeitas e intelectualizadas, mas seguimos uma pessoa real e concreta: Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus.

Texto de Carlos Mesters e Francisco Orofino.

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