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Com a palavra Tereza Cavalcanti: Uma espiritualidade que brota da memória viva do testemunho dos mártires

via Observatório da Evangelização*

No primeiro fim de semana de julho de 2019 tive a oportunidade e a graça de participar de um encontro de gente vinda de vários pontos do Brasil, trazendo relatos de martírio de líderes indígenas, religiosos, sem-terra, sem-teto e sem muitas outras coisas…

Ali também se fez presente um grupo de mulheres chamado “Bordadeiras do Horizonte”, vindas de Minas Gerais, e que bordam nomes de mártires, frases inspiradas de líderes, retratos de gente que nos inspira. Elas também vêm bordando os nomes de todos os mortos do mar de lama dos rejeitos das mineradoras de lá. Incrível a criatividade dessa gente! Foi um “banho” de espiritualidade e um impulso a continuar a luta pela justiça e solidariedade.

Ao final do encontro me pediram para refletir e escrever um texto sobre a espiritualidade do martírio. A seguir, compartilho com vocês o relato de minha participação no Encontro e minhas reflexões sobre a mística ou a espiritualidade que brota do testemunho dos mártires.

Confira:

I ENCONTRO DA IRMANDADE DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA

Participar do I Encontro da Irmandade dos Mártires da Caminhada foi uma Graça de Deus e um privilégio sem igual.

Fui convidada a abrir uma roda de conversa sobre “Memória: Testemunho e profecia”. Encerrada a conversa eu deveria falar sobre “Viver hoje a mística do martírio na Caminhada da libertação”.

Maravilhada com as liturgias e o ambiente que antecederam os testemunhos, contemplei aquele espaço onde nos reunimos, mais de cem pessoas: um enorme caramanchão em forma circular, apoiado sobre colunas laterais. A forma do local lembrava a abóbada celeste. O teto de telhas avermelhadas, sustentado por travessões de madeira na forma de raios, com um círculo suspenso no centro, parecia uma mágica: como não desabava aquele teto, sem ter uma coluna ou um poste no meio? O que simbolizava aquilo tudo?

Na minha modesta teologia da libertação, de mulher assessora de CEBs, pensei: “quem sustenta tudo é o Cristo. Mas Ele não aparece, como não aparece o “poste” central do caramanchão. O eixo que segura tudo é invisível, Cristo só nos aparece debaixo do véu do mistério. Sua força é transferida para as colunas e essas colunas são nossos mártires. Nossos “encantados”, como nos ensinou a Zenilda, viúva do índio Chicão Xucurú, assassinado por defender seu povo. Nossos mártires sustentam e dão força à tenda da comunidade de fé!

E com essa simbologia a palavra foi passada para a roda de conversa com os relatos de experiências de martírio. Experiências fortes, envolvidas em dores e mistério, sustentadas pela profecia.

Ao final dos testemunhos, convidada a refletir sobre a mística martirial, eu trouxe mais um depoimento que me fez descobrir o sentido da vivência do martírio na dinâmica da caminhada libertadora. Colhi esse depoimento numa entrevista que fiz a uma coordenadora de CEBs[1].

Depoimento de uma coordenadora de CEBs: Você poderia relatar algum momento forte da sua experiência nesses anos todos de CEBs?

L. – “É muito difícil selecionar, porque, com sinceridade, a minha vida nas comunidades foi marcada por muitas dificuldades, mas eu nunca perdi a alegria. Para mim é uma experiência muito alegre e muito feliz. Por isso é que nunca saí, nem penso sair. Uma experiência muito bonita, sofrida, mas muito rica, foi quando mataram um padre lá em São Mateus. Ele chegara da Itália havia três anos e acompanhava as comunidades na minha paróquia, que sempre foi muito perseguida, porque era uma comunidade bem organizada, que questionava, se movimentava, reagia frente às injustiças… Logo depois que mataram o Pe. Josimo, em 86, começaram a perseguir outros padres. Josimo ficou como mártir da terra, e as comunidades ficaram muito fortes. Então, juntaram-se o governo do estado e a UDR[2], tramando uma morte para desmoralizar o trabalho da Igreja. Escolheram justamente S. Mateus e mataram esse padre, Maurício. Mataram, levaram para o motel, jogaram em todos os meios de comunicação que ele tinha morrido num motel, com uma menina de 16 anos. E aí começou aquela onda de calúnias… Depois de 3 meses, tivemos que arrancar esse pobre, mandar fazer o exame, e no exame disseram que não era possível fazer a autópsia por excesso de formol. E quem tinha embalsamado foram eles mesmos, sem a nossa autorização. E até hoje foi uma morte que ficou muito no mistério. E esse foi um momento muito difícil, mas muito bonito, uma riqueza. A manifestação de fé, de coragem, de firmeza da comunidade, quando recebeu o corpo do Maurício, quando foi fazer protesto nas ruas, quando sepultou, quando foi arrancar esse corpo, recebeu de volta, sepultou… Foi assim um momento de crescimento e de oração, de espiritualidade muito forte. Eu cresci muito com isso daí, porque aprendi, na própria experiência, o que significou a morte de Jesus, o que significou o espírito de esperança que animou as primeiras comunidades e levou-as para a frente.

Nesse depoimento aparece toda a dinâmica da experiência do martírio na perspectiva cristã. Podemos então nos perguntar como o martírio foi vivenciado no início do Cristianismo”.

O sentido do martírio na Igreja Primitiva

A Igreja primitiva, perseguida pelo império romano e pelas sinagogas, conviveu com a realidade do martírio. Ela cresceu nas classes sociais mais exploradas, entre escravos, migrantes, gente sem recursos que de repente se descobriu importante para Deus!

De fato, o Apóstolo São Paulo, certo dia escreveu uma carta dirigindo-se às comunidades da zona portuária de Corinto, na Grécia. Sabemos quem trabalha nos portos marítimos: são carregadores de mercadorias e bagagens (naquela época não existiam guindastes nem caminhões!), marinheiros, cozinheiras/os, piratas, vendedores ambulantes, prostitutas, artistas populares… Enfim, não era gente muito “fina”! Então Paulo se dirige àquela gente com estas palavras:

“Portanto irmãos, vocês que receberam o chamado de Deus, vejam bem quem vocês são: não há entre vocês nem muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de alta sociedade. Deus, no entanto, escolheu o que é loucura no mundo para desacreditar os sábios. E Deus escolheu o que é fraqueza no mundo para desacreditar os fortes. E Deus escolheu o que é insignificante e sem valor no mundo, coisas que nada são, para reduzir a nada as coisas que são. E isso para que nenhuma criatura se glorie diante de Deus. Ora, é por Deus que vocês existem em Cristo Jesus. Pois Cristo Jesus se tornou para nós sabedoria que vem de Deus, justiça, santificação e redenção! E assim, aquele que se gloria, que se glorie no Senhor, como diz a Escritura.” (1ª. Carta aos Coríntios, 1,26-31)

Ora, essa população pobre e desprezada formou uma comunidade numerosa e cheia de vida, animada pela fé no mártir Jesus! Como diz aquele refrão que entoamos:

“Animados pela fé

E bem certos da vitória

Vamos fincar nosso pé

E fazer a nossa história”

A Sabedoria de Deus que se manifestou em Jesus não foi compreendida pelos dirigentes da sociedade daquela época. Jesus foi julgado, condenado e assassinado pelos poderosos. Seus discípulos e discípulas partiram anunciando o Evangelho e muitos também sofreram perseguição e martírio. Mas curiosamente a mensagem persistiu e atravessou os séculos.

Uma força misteriosa protege a verdade, a busca de justiça, a eficácia do amor. Mas essa força nem sempre aparece com clareza na nossa história. Por isso, diante da violência que se abate sobre nossos mártires, protestamos e clamamos a Deus. O clamor dos que sofrem injustiça e perseguição aparece com frequência na Bíblia.

O clamor dos mártires na Bíblia

A primeira vez que aparece na Bíblia o clamor de um mártir é quando Caim mata Abel e o Senhor lhe pergunta: “Onde está o seu irmão Abel?”. Caim responde: “Não sei! Por acaso sou o guarda de meu irmão?”Então Deus fala: “O que foi que você fez? Ouço o sangue do seu irmão, clamando da terra para mim! Por isso você é amaldiçoado por essa terra que abriu a boca para receber de suas mãos o sangue de seu irmão!” (Gn 4,9-11).

Só nesses 3 versículos, a Palavra “irmão” aparece 4 vezes. Se no relato da criação Adão e Eva pecam contra Deus, na história de Caim e Abel o pecado é contra o irmão, é contra a fraternidade. Caim não suportou viver em sociedade com seu irmão. O nome Abel significa “sopro”, ou fumaça, algo frágil. Caim não parece ter tido que lutar para matar o irmão, simplesmente chamou-o para o campo e o matou. Mesmo fraco, Abel parecia ser uma ameaça para o mais forte. Será que até hoje isso acontece?

Toda violência contra o ser humano nos choca. E quando essa violência provoca a dor e a morte de pessoas indefesas, ela nos escandaliza ainda mais e nos leva a clamar por justiça. Sabemos que, para Deus, a vida de seus filhos é sagrada e, como diz o Salmo: “É valiosa aos olhos do Senhor a morte de seus fiéis”(Sl 116,15). Outro salmo diz: “O sangue deles é precioso aos seus olhos”(Sl 72,14).

A última vez que o clamor dos mártires aparece na Bíblia, é no Apocalipse, onde se lê:

“Quando o Cordeiro abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as vidas daqueles que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho que dela tinham dado. Eles clamaram em alta voz:

´Senhor santo e verdadeiro, até quando tardarás em fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?´

Então foi dada a cada um deles uma veste branca. Também foi dito a eles que descansassem mais um pouco de tempo, até que ficasse completo o número de seus companheiros e irmãos que iriam ser mortos como eles.”(Ap 6,9 -11).

E logo depois vem a promessa de que Deus estenderá sua tenda sobre todos eles e enxugará todas as lágrimas de seus olhos (Ap 7,15.17). A verdade, porém, é que nós ainda não chegamos a esse tempo de redenção de toda a humanidade… Mas no Evangelho temos uma promessa de Jesus Cristo, nosso Senhor.

Uma promessa de Jesus

Ela se encontra, por exemplo, nas Bem-aventuranças pronunciadas por Jesus (Mt 5,1-12).

As Bem-aventuranças são uma proclamação de felicidade: “Felizes são vocês que hoje sofrem com pobreza, aflição, fome e sede de justiça, perseguição e assassinato”.

Se nossa fé é verdadeira, ela estará enraizada na Palavra de Deus e no martírio de Jesus. Jesus proclama a felicidade quando coloca que o sofrimento não é para sempre, que ele vai desaparecer e então nós vamos nos alegrar.

Mas será que essa alegria será só na vida após a morte? Não! Porque Jesus não diz “felizes serão os pobres, os aflitos etc.”, mas “felizes são os pobres, os aflitos…”, no presente! Então, nos perguntamos: como podemos ser felizes na pobreza, no sofrimento, na violência, na injustiça? Parece que só quando o sofrimento nos leva a mais solidariedade, mais luta pela justiça, mais amor e comunhão, só assim ele pode nos trazer felicidade. Vocês concordam?

Podemos também nos perguntar: quando o sofrimento pode nos abrir perspectivas de esperança? Deus nos envia muitas vezes os sinais de que Ele não nos abandona. Por exemplo, neste maravilhoso Encontro da Irmandade dos Mártires da Caminhada quantos sinais nos são dados da presença luminosa do Espírito? Mas as comunidades têm que trabalhar, fazer renascer a vida e o amor por cima da morte, do ódio e do medo. E assim elas fazem a experiência do “Emanuel”, do “Deus conosco”!

Mas olhando a realidade que nos cerca, pensamos: onde está a justiça? Onde foi parar a honestidade, o respeito, a paz e o amor? Por que volta a violência, o descaso, a injustiça e a dor dos pobres?

Podemos nos lembrar da situação dos discípulos e discípulas de Jesus logo após sua morte na cruz. Quando as mulheres foram ao túmulo de Jesus e não encontraram o seu corpo, o Evangelho de Marcos diz que elas fugiram assustadas e não levaram a mensagem do anjo porque tinham medo. Qual foi essa mensagem? Foi a seguinte:

“Não fiquem assustadas. Vocês estão procurando Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou! Não está aqui! Vejam o lugar onde o puseram. Agora vocês devem ir e dizer aos discípulos dele e a Pedro que ele vai para a Galileia, na frente de vocês. Lá vocês o verão, como ele mesmo disse!” (Mc 16, 6-7).

Essa mensagem pode ser repetida hoje: ir para a Galileia, onde Jesus inaugurou sua pregação e seus sinais, significa voltar ao início de tudo, recomeçar toda a caminhada. Parece que é isso que somos chamados a fazer: temos que insistir na missão, como o Papa Francisco nos pediu: estar sempre “em saída”.

Não vamos desanimar, vamos para as ruas, vamos buscar caminhos novos de reconstrução da sociedade. Uma sociedade cujo tecido está rasgado, ferido, banhado em sangue. Vamos para a Galiléia, vamos para as periferias sofridas e abandonadas, porque é lá que veremos o Ressuscitado!

Referências:
[1]Na verdade, ela foi coordenadora do IXº. Encontro Interelesial de CEBs que foi no Maranhão. Seu nome é Lucinete (Lusinete?), mulher leiga de uma liderança especial.
[2]Trata-se da União Democrática Ruralista, conhecida entidade de latifundiários e proprietários rurais.

Texto por Tereza Cavalcanti, graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1966), em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Louvaina, (1971) e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003). Ela é mestre e doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (1983 e 1991, respectivamente). Atualmente é assessora e prestadora de serviços do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e professora assistente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ela é membro do grupo Emaus. Publicado originalmente no site Observatório da Evangelização.

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