por Marizilda Cruppe via Projeto Colabora*
Dias após ação de retomada de suas terras invadidas por madeireiros, lideranças do médio Tapajós temem atentados
Itaituba (PA) – (Fotos Anderson Barbosa) – A conversa aconteceu em torno de uma grande mesa de madeira que acomodou diversas lideranças e guerreiros da aldeia Sawré-Maybu, às margens do médio Tapajós, no oeste do Pará. Sob o teto de palha, na condição de não serem fotografados ou identificados – uma recente estratégia de segurança adotada em razão do momento que vivem os Munduruku e demais povos indígenas do Brasil: “A nossa vida não tem valor nenhum, o que tem valor é a madeira. Por isso que se torna mais fácil para eles tirarem a vida de uma liderança e continuarem tirando madeira de dentro da terra indígena”, diz a liderança com semblante de preocupação. Outro participante continua: “A gente já tinha que se defender de tanta coisa. Era garimpo, soja, hidrelétrica, “ferrogrão” e agora entra a madeira. Só que a madeira está muito perto de nós. Eu nunca tive tanto medo de andar na cidade como agora, porque a gente não sabe quem é quem”, desabafa, com a concordância dos demais.
Os Munduruku tiveram seu território reconhecido pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RECID) apenas em abril de 2016. A partir do reconhecimento, no mesmo ano, decidiram demarcar por conta própria as suas terras. Na primeira etapa da autodemarcação não encontraram áreas de retirada ilegal de madeira e nem ramais – estradas abertas pelos madeireiros para escoar, de caminhão, as toras de madeira nobre e de alto valor comercial. Foi a partir de 2017 que perceberam a presença dos invasores. Mês passado, os Munduruku do médio e alto Tapajós planejaram, então, sair para a quinta etapa da autodemarcação. Durante dez dias, organizados em cinco grupos, percorreram cerca de 100 km dentro da Terra Indígena Sawré-Muybu e encontraram dois grupos de madeireiros. Em um comunicado por escrito, os indígenas disseram: “Ficamos muito revoltados por ver as nossas árvores derrubadas e nossas castanheiras como toras de madeira em cima de um caminhão. E nós sabemos que quando retiram madeira vão querer transformar a nossa terra em um grande pasto para gado”. Indígenas e madeireiros ficaram frente-a-frente e os invasores tentaram propor um acordo que os indígenas nem chegaram a ouvir. Para os Munduruku a terra é sagrada: “A gente está protegendo a nossa mãe que é onde os nossos filhos vão sobreviver. Para nós, uma terra é uma vida e a gente está cuidando da vida da natureza também”, relata a liderança. Os Munduruku deram um prazo de três dias para os madeireiros retirarem 11 máquinas pesadas, dois caminhões, um quadriciclo, oito motos e uma balsa, todos sem placa. A balsa era usada para atravessar o rio Jamanxim e chegar até a BR-163, importante via de escoamento de grãos e de madeira. Os madeireiros saíram, mas a contragosto. Tanto que, na sequência, intensificaram as ameaças às lideranças.
O vento chega para deixar o ambiente mais leve e anunciar a chuva que cai sobre o Tapajós. Um mutum usa a meia-parede da casa como puleiro para se abrigar e os indígenas brincam “tá querendo ir para a panela, é?”. A conversa pausa por um instante para um café fresco e adocicado. Os visitantes demonstram preocupação com a chuva, pois atravessariam para a outra margem do rio. A sabedoria ancestral indígena os tranquiliza e diz que a chuva segue na direção oposta ao destino do povo de fora. Uma das visitas sai para observar o céu e se depara com um cachorro sentado, confortavelmente, em uma cadeira menor que ele. Acha graça, fotografa com o celular e volta para acomodar-se ao redor da mesa onde a conversa já está para ser retomada.
Descrença na Justiça
“Eu não confio mais nesses órgãos do governo. Pelo tempo que a gente vem pedindo para demarcar essa terra e para fazer uma operação dentro da terra para tirar os madeireiros e eles nunca fizeram. Por conta disso, a gente fez, a gente arriscou a nossa vida para tirar os madeireiros de dentro da nossa terra. E a gente conseguiu. Mas agora a gente corre risco de vida”, o relato faz com que os rostos dos presentes sejam tomados por expressões de preocupação. Alguém completa: “Eles podem matar uma liderança que cem lideranças vão aparecer.” As crianças pequenas, que ainda não falam português, circulam pelo cômodo sorridentes sem se darem conta do clima tenso da conversa dos adultos.
O relato continua: “Eu não acredito mais na Justiça. O que eu acredito hoje em dia é na nossa luta porque a gente já pediu à Justiça para demarcar essa terra, tomar providências para tirar esses madeireiros, tirar garimpeiro, a gente fez denúncia por cima de denúncia e nunca fizeram nada. Então, hoje em dia, a gente está acreditando na nossa luta. Essa ação que a gente fez, a gente convidou a Funai. E a Funai não apareceu. Hoje em dia não existe mais Justiça. Recentemente tivemos a morte de um parente e tá igual à morte de um animal. Pelo menos, o animal a gente ainda tem pena, e quando morre um parente faz de conta que não morreu ninguém. Então, é por isso que eu não confio na Justiça mais não.”
A situação dos povos indígenas só piora
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma instituição fundada há 44 anos que acompanha indígenas, agricultores e comunidades tradicionais em situação de conflito. Quando as organizações não governamentais já não mais suportam a pressão da violência e os governos se isentam de suas obrigações é a CPT que continua ao lado das lideranças ameaçadas. Todos os anos a Comissão publica os “Cadernos de Violência no Campo”. São as únicas estatísticas produzidas no Brasil sobre violência contra os defensores ambientais.
A CPT de Itaituba atende alguns dos municípios mais perigosos para lideranças em todo o Pará. A coordenadora dessa regional, a advogada Raione Lima Campos, de 30 anos, faz uma análise dramática da situação. “Nós estamos vivenciando um cenário de graves violações dos direitos humanos, principalmente contra os povos do campo, indígenas e de comunidades tradicionais, na região do médio Tapajós. Avaliamos um momento de muito risco para as lideranças que fazem essa resistência e enfrentamento às questões que envolvem interesses de pessoas e grupos que não levam em consideração a vida desses povos e dessas lideranças, nem a proteção ao meio ambiente, a defesa da floresta, dos seus direitos e dos seus territórios”. Dra Raione critica a ineficiência do Estado Brasileiro na proteção dos defensores. “Uma outra situação é que o Estado não tem se responsabilizado nem tem interesse em se responsabilizar pela segurança das lideranças que estão ameaçadas nessa região, tampouco pela segurança das defensoras e defensores de direitos humanos. Então, torna-se mais difícil para as lideranças que estão na linha de frente na defesa dos direitos coletivos e da permanência nos seus territórios. Diante de tudo isso, a CPT tem uma preocupação muito grande com os conflitos que já acontecem e como eles podem se agravar”.
Morte de defensores do meio ambiente: números piores que os de guerras
Apesar do presidente Jair Bolsonaro negar e desprezar a produção científica, são os cientistas que trouxeram, trazem e continuarão trazendo meios para a compreensão dos fatos através da produção do conhecimento. Em um artigo recente, publicado pela revista Nature Sustainability, um dado choca: no período entre 2002 e 2017 o número de defensores do meio-ambiente assassinados representa mais do que o dobro do número de soldados do Reino Unido e da Austrália mortos em zonas de guerra, no mesmo período. O número de defensores assassinados também representa quase metade do número de soldados americanos mortos nas guerras do Iraque e do Afeganistão, desde 2001. Em The supply chain of violence (A cadeia de suprimento da violência, em tradução livre) as pesquisadoras analisam dados coletados em um período de 15 anos. Um terço das mortes, entre 2014 e 2017, estavam relacionadas à mineração e ao agronegócio. Um dos argumentos das cientistas é de que empresas, investidores e governos federais, que estão nos extremos da cadeia de violência, precisam ser mais responsáveis.
Os números usados na pesquisa são uma compilação de dados da Comissão Pastoral da Terra e da organização Global Witness, entre outros. As pesquisadoras destacam, ainda, que os assassinatos dos defensores representam apenas a “ponta do iceberg” de toda a violência que os defensores ambientais enfrentam. Segundo o artigo, para cada defensor assassinado, outros milhares continuam enfrentando violência direta, ameaças e intimidação psicológica. Mary Menton, uma das autoras do artigo, doutora em Conservação Florestal e pesquisadora em Justiça Ambiental do Sussex Sustainability Research Program, da University of Sussex, do Reino Unido, diz que está muito preocupada com a atual situação do Brasil. “Por vários anos seguidos o Brasil foi o país com maior número de assassinatos de defensores. O que me preocupa agora é a onda de criminalização, de deslegitimação, dos discursos de ódio do atual governo federal que cria um ambiente de terror e incentiva a violência contra os povos indígenas e contra os defensores ambientais. Tenho medo que essa violência aumente.”
Com a mesma preocupação está Felipe Milanez, professor de Humanidades da Universidade Federal da Bahia e doutor em Ecologia Política pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Vivemos um momento de saques e invasões de territórios e violência epistêmica. A destruição das comunidades nos seus modos de conhecer o mundo. O assassinato das lideranças, das pessoas mais sábias das comunidades e de seus líderes políticos. O medo mais urgente é quando esses bandeirantes modernos, esses piratas que estão nessas regiões de conflito incentivados pelo governo federal se sentem à vontade para entrar, invadir, saquear e matar”. Outra preocupação do professor é com a personalização da luta e da resistência das comunidades. Madeireiros, grileiros e garimpeiros costumam enxergar nas lideranças os grandes obstáculos no caminho dos seus objetivos de riqueza e lucro fácil.
Os criminosos não enxergam os órgãos fiscalizadores (Funai, IBAMA, MPF) e investigadores (Polícia Federal) do governo como entraves para as suas ações. E é graças à cultura da impunidade que esses agentes do crime escolhem seus alvos e os matam. Milanez analisa: “Esse bandeirante, esse pirata se acha pessoalmente atingido por aquela liderança ou aquele cacique que no seu entender o fez perder dinheiro. Foi assim que Dorothy Stang, Chico Mendes, Zé Cláudio e Maria, Marçal Tupã foram assassinados. A pessoa que puxa o gatilho hoje está sendo literalmente incentivada pelo presidente Jair Bolsonaro a matar. É uma situação extremamente grave e que depende de uma mobilização da sociedade para evitar um genocídio, um holocausto social e ecológico na Amazônia”.
Para aquela parcela da sociedade que vive nos centros urbanos, com acesso a direitos e privilégios, que não abre mão de confortos que são danosos ao meio ambiente e que acredita que salva a natureza quando corta o consumo do canudinho, atenção à reflexão desta jovem liderança: “A única coisa que a gente tem que fazer é lutar e não desistir da luta. A gente vai se aliar com os parceiros que estão na linha de frente, a gente não vai desistir. Mesmo com medo. Porque o medo faz a gente enfrentar a si mesmo. Se eu tiver medo eu vou pra cima. Eu não sei ter medo e recuar. Eu vou lutar pelo que eu acredito, buscar os meus direitos, brigar pelo meu território, brigar pelos rios. Quando cai uma liderança nascem várias. Nós somos como formiga, quando você pisa em uma surgem várias pra atacar os teus pés e você tem que sair correndo. É o que vai acontecer se alguém quiser nos atacar. Nós vamos lutar contra esse mal que tá acontecendo com os Munduruku e todos os povos indígenas”.
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Publicado originalmente via Projeto Colabora.
Foto de capa: Anderson Barbosa