Leia a reflexão do evangelho do próximo domingo. O texto fala sobre Lucas 13,1-9, e o comentário pertence a Adroaldo Palaoro.
Boa leitura!
“… pensais que eram mais culpados do que todos os habitantes de Jerusalém?” (Lc 13,4)
No seu caminho de vida Jesus se depara com acontecimentos trágicos; algumas pessoas lhe dão a notícia de uma horrível matança de alguns galileus no interior do Templo. O quê estas pessoas esperam de Jesus? Desejam que Ele se solidarize com as vítimas? Querem que Ele lhes explique qual é a culpa dos galileus para merecer uma morte tão violenta? Por que Deus permitiu aquela morte sacrílega em seu próprio templo? Para os judeus não há castigo sem culpa.
Esta é a nossa permanente tendência em buscar culpados pelas desgraças, sejam provocadas pelo próprio ser humano, pela força da própria natureza, pelas doenças inesperadas, acidentes, etc.
Jesus desmascara tal atitude e rejeita toda crença de que as desgraças são um castigo de Deus, ou que as pessoas, de uma maneira ou de outra são culpadas. Jesus não revela o rosto de um Deus “justiceiro” que castiga seus filhos e filhas, “distribuindo” enfermidades, desgraças ou acidentes… por causa de seus pecados. Ele não perde tempo com considerações teóricas sobre a origem última das desgraças, nem da culpa das vítimas ou da vontade de Deus. Ele convida as pessoas a dirigirem o seu olhar para o presente, fazendo uma “outra leitura” dos acontecimentos trágicos.
Certamente, a primeira coisa não é perguntar-nos onde está Deus, mas, onde estamos nós diante das calamidades e sofrimentos. A pergunta não é “por que Deus permite esta terrível desgraça?”, mas “por que nós consentimos e não reagimos solidariamente diante de tantos seres humanos que são violentados, que vivem na miséria e fome, que são indefesos diante da força da natureza?
Aquele que acompanha Jesus no seu caminho de vida, também “vai sendo talhado” pelas cenas que contempla, com o coração aberto à dor e à aflição da humanidade. Essa dor esvazia nossas auto-suficiências e purifica nossas auto-imagens narcisistas, humanizando-nos. Ao contemplar o amor redentor de Deus revelado em seu Filho Jesus, nós nos perguntamos onde está Ele quando acontecem desgraças.
Há aqui uma inversão de perguntas: Para responder à interrogação -“Onde está Deus nas situações de sofrimento e morte?”-, Deus nos desafia a responder à sua própria questão: “Onde está você no meu sofrimento?”.
Na Quaresma, de modo especial, “descemos” com Jesus até às dores da humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o rosto Compassivo de Deus, identificado com todas as vítimas da história.
É o Deus que se identifica com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Não podemos chegar ao Deus de Jesus pelo caminho largo e fácil do poder e da razão, senão pela senda escarpada e dura da solidariedade e da loucura da Cruz.
A questão determinante para os cristãos está em buscar a Deus e crer na sua transcendência a partir da solidariedade com as vítimas, com os crucificados deste mundo e com todos os que necessitam calor humano, compreensão, tolerância, companhia e carinho. O tempo da Quaresma desperta em nós o sentido profundo da conversão, e isto não significa pedir contas a um “deus distante”, mas identificando-nos com as vítimas; não descobriremos Deus quando protestamos sua indiferença e frieza diante das desgraças, ou negando sua existência, mas colaborando de mil formas para “aliviar a dor humana”. Vamos então descobrir que Deus está nas vítimas, identificando-se e sofrendo com elas, defendendo sua dignidade eterna de filhos e filhas; vamos descobri-Lo presente naqueles que lutam contra tudo aquilo que desumaniza o ser humano.
A busca em apontar culpados nos limita, nos afunda, alimenta a irresponsabilidade que infantiliza, e nos faz cair no angustiante sentimento de culpabilidade e desespero; a atitude sadia é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem acolhe a vida com as diferentes situações que ela apresenta.
É a responsabilidade que desperta pesar e dor frente às situações de desgraças e calamidades; mas esse pesar doloroso não nos paralisa e nem nos afunda, mas nos mobiliza para a mudança. É esta responsabilidade que podemos associá-la com a conversão, pedida pelo Evangelho de hoje. Porque o “perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça, culpa ou castigo, mas simplesmente como a conseqüência de uma atitude e um comportamento desajustados.
Em outras palavras: se não somos responsáveis, ou se não respondemos humanamente aos diferentes desafios que a vida nos apresenta, estamos fechando as portas de saída, criando infelicidade para nós e para os outros, tornando a convivência impossível e destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre. É precisamente a isso que aponta a parábola da figueira plantada na vinha.
A “experiência de fé” constitui, muitas vezes, o lugar onde a culpa pode nos armar as piores trapaças, impedindo a manifestação da força vital que há em nós.
Desse modo, a fé, em vez de libertar, converte-se num verdugo a serviço das forças de morte, traindo assim o que há de mais profundo em sua mensagem de liberdade. A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar… que muitas vezes tornam difícil reconhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa Nova.
Também a imagem do “Deus sempre maior”, do Deus vivo e prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de nossa consciência e inconsciência, marcadas pela culpabilidade.
Por obra e graça da culpa, “Deus” converte-se num Deus de morte, num Deus oprimido e opressor, num Deus “onivigilante”, que investiga morbidamente em nossa interioridade qualquer pensamento ou desejo. D’Ele nada escapa: tudo vê, tudo escuta, tudo controla… Um “deus” assim é inaceitável e insuportável.
“Assim como Deus nos libertou do pecado… torna-se urgente libertar Deus da culpa” (Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas nossa culpa o transformou num “Deus de morte”. “Libertar Deus da culpa” significa “deixar Deus ser Deus” em nossa vida. Poderíamos, assim, redescobrir e viver na presença de um Deus compassivo, um Deus festa, um Deus afeto, um Deus liberdade, um Deus criança…
Foi justamente para nos libertar do atoleiro da lei e da culpa que Cristo assumiu nossa condição humana. N’Ele, o Pai nos libertou da angústia da culpabilidade mórbida, para tornar possível em nós um encontro fecundo e transformador da vida. Libertados do “circulo infernal da culpa”, agora sim, podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa.
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Publicado originalmente no site do Centro Loyola.