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“Estamos assistindo a uma espécie de revanche das elites”

via Carta Capital.

O dominicano Xavier Plassat, um dos líderes da luta contra o trabalho escravo na Comissão Pastoral da Terra, fala sobre o governo Temer

O jovem estudante de Sciences Po de Paris – que tinha um pôster de Marighella em seu quarto – tornou-se dominicano, apoiou o atormentado frei Tito de Alencar no seu último ano de vida no convento francês e, depois de repatriar o corpo do amigo, em 1983, resolveu instalar-se no Brasil e pôr em prática as ideias da Teologia da Libertação na opção preferencial pelos pobres.

Depois de quase 30 anos de vida no interior do Pará e Tocantins, Xavier Plassat, de 67 anos, é atualmente o coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o trabalho escravo.

Ele veio a Paris para a missa de corpo presente do dominicano Henri des Roziers, jurista que dedicou os últimos 40 anos de sua vida à defesa dos camponeses em processos que visavam punir os responsáveis pelo assassinato de líderes sindicais rurais em diversas localidades do Pará, onde morou.

Foi jurado de morte por fazendeiros e passou os últimos dez anos no Brasil sob proteção policial. Em 2013, depois de um AVC, voltou para Paris, onde morreu dia 26 de novembro. Na missa, cobriam o caixão as bandeiras do MST e da CPT.

CartaCapital: Qual é a situação atual no Brasil?

Xavier Plassat: Caótica. Estamos assistindo a uma espécie de revanche das elites que engoliram sapos durante os anos Lula e um pouco menos no governo Dilma. Eles agora tentam cuspir os sapos. Muitos direitos adquiridos, avanços sociais que foram construídos nesses anos foram desfeitos da maneira mais brutal, mais antidemocrática e, às vezes, da maneira mais inábil, o que nos favorece. Há algumas medidas que foram tomadas e que são tiros no pé.

CC: Quais?

XP: Particularmente, no setor que acompanho de perto, o direito do trabalho e a luta contra o trabalho escravo. No direito do trabalho, pretende-se pegar todas as decisões do TST e verificar quais foram desfavoráveis aos patrões e fazer com que a lei permita que todas as violações condenadas por essas decisões se tornem legítimas, legais.

É a reforma do direito do trabalho. Ela foi em grande parte votada e já carrega uma enorme mala de maldades, mas há ainda uma parte não votada, que por ora foi posta de lado por ser odiosa e escandalosa demais.

Como as regras que dizem respeito ao trabalho rural. A reforma das leis trabalhistas começou a ser aplicada há poucos dias, mas já temos sinais de seus efeitos nefastos na redução de 90% das ações dos assalariados na Justiça do Trabalho por queixas de violações.

CC: Por que elas diminuíram?

XP: Porque a nova lei prevê que, se você entra com ação na Justiça do Trabalho e perde, tem de pagar as custas. É uma violência contra os mais pobres, que não vão mais recorrer à Justiça para defender seus direitos quando se sentirem lesados.

Sobre a lei que vai reformar os direitos dos trabalhadores rurais, é importante lembrar que em 1988 a nova Constituição deu os mesmos direitos aos trabalhadores rurais e urbanos. A nova lei rompe essa equivalência e vai considerar normal o que até agora era condição degradante de trabalho.

CC: Por exemplo?

XP: Num lugar isolado, montanhoso da zona rural, com mais de 15 trabalhadores, o patrão não é mais obrigado a dar água potável, nem toaletes, tampouco dar o tempo para o trabalhador comer sentado à mesa. Na lei aprovada em 2003, que fazia do Brasil um dos países mais modernos do mundo, era considerada trabalho escravo “a imposição de condições degradantes”.

Se agora as condições degradantes não são mais consideradas desta maneira… Para piorar, uma portaria do Ministério do Trabalho [atualmente suspensa pela Justiça] diz que a definição do trabalho escravo não é mais a da lei. Para que o trabalho seja considerado escravo, é preciso que violações sejam acompanhadas por uma violência brutal e, praticamente, de prisão domiciliar. Assim, o crime de prisão domiciliar é assemelhado ao crime de trabalho escravo.

Dessa forma, só seria considerado escravo quem estivesse com amarras, impedido de ir e vir. É uma grande confusão, uma grande mentira histórica, jurídica e teórica considerar a escravidão como a proibição de ir e vir. Como diz muito claramente o papa Francisco, a escravidão é tratar alguém como coisa.

CC: No que consiste seu trabalho como coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra contra o trabalho escravo?

XP: A CPT faz uma campanha para alertar os trabalhadores e acolhe os que fogem de situações de escravidão. Trabalhamos para que o Estado adote programas sociais e políticas públicas que vão às raízes do problema porque sabemos que, apesar de termos libertado 52 mil escravos desde 1995, ainda não erradicamos a escravidão. Nosso trabalho não é apenas de misericórdia e escuta. É um trabalho em profundidade. Acabamos de lançar um novo programa, o “Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão”.

Conclamamos à ação as instituições que têm algo a fazer. Construímos uma espécie de rede local entre as regiões para que os trabalhadores que estão em risco de escravidão ou que acabam de ser libertados não voltem a cair nela. Trabalhamos para que ações públicas possam ser exercidas sobre populações que tentamos definir da maneira mais precisa, ou seja, as que estão em situação de grande vulnerabilidade.

CC: O que representa a morte de frei Henri des Roziers para o Movimento dos Sem-Terra?

XP: Sua morte é um grande luto, mas não inesperado. Sabíamos que sua saúde era frágil, mas ele ainda irradiava de tal forma uma forte presença com sua palavra, sua escuta, as visitas que muitos faziam a Paris e depois levavam notícias ao Brasil. Mas ele deixou intacta sua memória junto aos que com ele trabalharam.

Henri representou uma luz, mais ainda nessa noite escura que está descendo sobre nós depois do golpe. Jovens advogados, centenas de militantes, funcionários do Estado em nível federal e regional conviveram com Henri e muitas vezes foram alvo do fogo de sua cólera sagrada. Esses aprenderam a mudar de atitude e ver o que é importante.

Penso, por exemplo, no juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Roberto Caldas: na missa de corpo presente, em Paris, informou que foi Henri quem lhe revelou a existência de trabalho escravo. Imagine… O juiz do Trabalho de Marabá, Jônatas, que se dedicou à luta contra o trabalho escravo, fez uma viagem a Paris e escreveu ter ficado com a impressão de estar ouvindo o papa Francisco quando Henri falava.

Penso nos procuradores do Trabalho, que organizaram uma homenagem a Henri, alguns anos atrás. Muitos inspetores do Trabalho aprenderam a trabalhar com a CPT, com Henri. Nós todos aprendemos a trabalhar com ele. Era um advogado de pés descalços a viver no meio de quem defendia. E ele sabia mobilizá-los porque o direito se conquista.

CC: O presidente da Corte Inter-americana de Direitos Humanos, Roberto Figueiredo Caldas, disse na missa que o Brasil tem uma excelente legislação para o controle do trabalho escravo.

XP: Ela é, de fato, muito avançada sob muitos aspectos, tem uma definição clara e contemporânea da escravidão, quatro tipos de ações que caracterizam a escravidão e uma delas é suficiente para caracterizar o trabalho escravo.

CC: A lei não mudou com o golpe?

XP: Não. Há anos o grupo de deputados que representa os grandes proprietários de terra e as grandes empresas de construção propunha projetos de lei que não conseguia aprovar. Foi por isso que o ministro do Trabalho assinou uma portaria há um mês e meio para impor o que a lei não prevê.

Despertou a indignação da Inspeção do Trabalho do próprio ministério, a oposição do Ministério Público Federal que lhe impôs o adiamento dessa portaria. A própria presidente do STF suspendeu-a dizendo que ela é ilegal e inconstitucional.

CC: A publicação da lista negra dos maus patrões é eficaz?

XP: No Brasil, ela se chama lista suja, publicada para o mercado e para a sociedade. Ela traz o nome dos empregadores que foram pegos com escravos em suas propriedades. É isso que os setores mais arcaicos querem impedir.

CC: O senhor deu números de trabalhadores libertados da escravidão. A situação melhorou desde que o senhor chegou ao Brasil?

XP: Diria que melhorou em termos de aceitação e aplicação dessa política de controle da escravidão. Mas de uma maneira contraditória porque hoje os golpistas estão fazendo um esforço enorme para abolir a legislação em vigor e dificultar ao máximo o trabalho dos inspetores. Esse é o sentido da portaria do ministro.

Para caracterizar o trabalho escravo, seria preciso que um policial o definisse como tal. Isso é contrário a todas as convenções da Organização Internacional do Trabalho. Mas a gente fez progressos porque o número de pessoas que encontramos em situação de escravidão foi reduzido de oito anos para cá.

CC: Isto é uma diminuição real ou a modificação das estratégias tornou essa situação menos visível?

XP: O trabalho escravo é o tipo de crime invisível, como os ataques sexuais. Difícil de provar, difícil de ver. É necessário, pois, fazer todo um trabalho de educação, de sensibilização. É preciso falar do trabalho escravo.

CC: O PT governou o Brasil durante 13 anos. Por que os governos Lula e Dilma não enfrentaram com o necessário empenho o problema da reforma agrária?

XP: Foi uma espécie de pacto das elites, sorrateiramente selado em nome do exercício e da manutenção do poder. Eleger um presidente como Lula não era impossível, mas ele sabia desde o início que não teria no Congresso os votos suficientes para governar.

Então, ele fez acordos contraditórios com esse pântano brasileiro que representa, provavelmente, 60% do Congresso e que vota a favor de quem dá mais, como num leilão.

Lula não fez a reforma tributária, a reforma fiscal nem a reforma agrária. Ele conseguiu canalizar muito mais recursos para os mais pobres, diminuiu a miséria, mas não reduziu os abusos das classes privilegiadas.

CC: Como o senhor vê o futuro da Igreja Católica no mundo?

XP: No mundo não sei, mas me preocupa verificar que mais do que nunca a religião é um instrumento do poder. É o caso do Brasil. Instrumentalizam as religiões para entorpecer a população, para oprimir, impor códigos morais inaceitáveis. Vemos com preocupação o avanço carismático na Igreja Católica ou entre os evangélicos.

CC: Quando o senhor entrou em contato com a Teologia da Libertação?

XP: Quando tinha 15 ou 16 anos, li um livro, A Igreja no Momento Latino-Americano, de François Outart e E. Pin. O livro relata as primeiras experiências das Comunidades Eclesiais de Base. Foi um pouco depois do Concílio Vaticano II. Este livro me impressionou. Na época, eu tinha um amigo cujo tio havia trabalhado no Brasil e me falava dessa terra distante.

Por outro lado, eu militava na Juventude Estudantil Católica e pude constatar a proximidade entre os objetivos da JEC e a Teologia da Libertação, uma experiência que visa integrar a vida real com a fé, fazer da esperança cristã uma coisa concreta, bíblica, na transformação da sociedade.

Esse é o modo de ação da JEC. Depois do movimento de maio de 1968, na França, aprofundamos isso nos apropriando de alguns dados do marxismo. Foi assim que fui educado na fé cristã.

CC: E o senhor decidiu ser dominicano bem depois?

XP: Sim. Tinha ideia de ser padre, mas afastava essa tentação. Só via ao redor de mim padres que não viviam nada disso, exceto o capelão da JEC. Encontrei o primeiro dominicano com 16 anos, pouco antes do vestibular.

Pensei, “eis uma maneira aberta, democrática, livre, inteligente de ser padre, de não ser prisioneiro, tampouco uma espécie de funcionário público da Igreja”. Temos uma gama de ações possíveis, estudamos, vivemos em comunidade, é democrático. Mas antes fiz meus estudos e só entrei na ordem dominicana depois de fazer o Instituto de Ciências Políticas (Sciences Po).

CC: Após a eleição do papa Francisco, a Igreja brasileira mudou no sentido de maior abertura para a Teologia da Libertação e sua clara opção pelos pobres?

XP: A Igreja é um imenso navio que se move lentamente. O problema é que a tripulação deste navio se formou no período anterior a Francisco. Os clérigos da Igreja brasileira cursaram uma escola cujos bispos foram nomeados por pontífices anteriores.

Um bom número deles, não todos, adotou uma linha mais distante do que próxima do Concílio Vaticano II. Ter um novo papa que evoca o Concílio não significa que a tripulação mude a rota. O barco hesita. Sinto que há um pouco de resistência. O papa sempre repete: “Quero uma Igreja que saia. Saiam das sacristias, dos quatro muros das igrejas, a verdadeira Igreja é o mundo”. Isso incomoda.

Eu trabalho numa paróquia há cinco anos, em Aragominas, no interior do Tocantins. Os fiéis são pessoas muito simples, camponeses assentados. Quando usamos as palavras do papa, eles entendem. A resistência pode vir dos que têm coisas a perder, como poder e reconhecimento.

CC: O Conselho Indígena Missionário, criado, como a CPT, pelo dominicano dom Tomás Balduíno e por dom Pedro Casaldáliga, tem condições de proteger os índios brasileiros tão ameaçados por toda espécie de agressão?

XP: É como perguntar se Davi tem como se defender de Golias. É a mesma coisa para os camponeses, para a CPT, para os escravos. Hoje, o Cimi está realmente só. Se não fosse o Ministério Público Federal… A procuradora federal dos direitos dos cidadãos é Deborah Duprat, grande defensora dos direitos indígenas, e mesmo Raquel Dodge é uma especialista da luta contra o trabalho escravo. Mas as iniciativas desde que Temer assumiu são desastrosas para os índios. A Funai não defende mais os índios, o Cimi está mais sozinho que nunca.

Fonte: Entrevista e texto de Leneide Duarte-Plon, publicado por Carta Capital, 01/01/2018.

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