Gênero

“O diálogo é um exercício democrático dos mais raros ultimamente”

Foto: Patrick Arley/Reprodução Facebook
Confira a entrevista da jornalista Maíra Kubík Mano, de Carta Capital, com a vereadora mais votada em Belo Horizonte, Áurea Carolina. Mulher negra e feminista.

Boa leitura!

Após um ano no cargo, a vereadora Áurea Carolina, a mais votada em Belo Horizonte, defende a aproximação dos antagonistas. “Não se constrói a luta se aniquilando”

Em 2016, uma peça publicitária para disputar vagas na Câmara Municipal de Belo Horizonte chamou atenção. Em um mesmo vídeo, diversas candidaturas se apresentavam. Áurea Carolina era primeira e abria a peça dizendo: “Eu sou Áurea Carolina, candidata a vereadora. Mas se você não quiser votar em mim, vote na Polly”. Polly então aparecia afirmando “A Cristal também tem propostas ótimas, vote nela”. E víamos Cristal surgir para defender a eleição de Marimar e sucessivamente. Uma reforçando a candidatura da outra.

O ineditismo de uma campanha coletiva rendeu frutos: a cientista política Áurea Carolina (PSOL), com um discurso marcadamente feminista e antirracista, foi a candidata mais votada da cidade. A atriz e diretora Cida Fabella também se elegeu pela legenda e, juntas, elas fundaram a “Gabinetona”, um espaço de atuação comum.

Além desta, outras medidas bastante inovadoras foram criadas, como um grupo de teatro, “As Diferentonas”, e os “labpops”, laboratórios populares de leis. Passado um ano do pleito, Áurea faz, nesta entrevista, um balanço sobre a viabilidade das propostas e o impacto delas em um cenário de tanta descrença na política.

CartaCapital: Depois dos primeiros meses de mandato, como você tem visto a diferença entre a proposta de um mandato coletivo e a possibilidade de implementá-la na Câmara Municipal?

Áurea Carolina: O que faz o mandato ser coletivo são as nossas práticas, que trazem a nossa agenda de transformação, envolvendo as diversas lutas da construção da campanha. A busca de horizontalidade, um princípio e desafio permanente, é o que permite construir relações de confiança e fortalecer o vínculo entre nós. Isso é muito importante porque o mandato é uma organização nova.

Acho que não tínhamos a dimensão disso. E acaba sendo um refúgio para suportarmos, dentro da instituição, esse desejo da experimentação de uma política que seja radicalmente democrática, como anunciamos na campanha. Não tem ponto de chegada, todo dia é bem exigente. E quanto mais a gente tenta criar processos para agir com sinceridade, com transparência entre nós mesmas, conseguimos comunicar isso para a cidade também.

Os espaços de participação que nos propomos a inventar é que são o chão nosso de realização daquilo que nós falamos que buscávamos na campanha.

CC: E que espaços são esses? O que têm dado certo?

AC: Acabamos de estrear um grupo de teatro e educação popular, o “As Diferentonas”. É um recurso importante, criativo, de mobilização, de conversa direta com as pessoas, de conexão do mandato com outras frentes. Outro experimento: criamos um pensamento de mandato aberto. São duas instâncias de participação do mandato, que são laboratórios populares de leis (labpop) e grupos fortalecedores (geforte). Os “labpop” são para formulação de proposições legislativas.

Até agora só funcionaram para emendar projetos que já estavam tramitando, mas desejamos que sirvam para a criação de projetos de lei próprios do mandato. Queremos fazer uma lei de cultura viva, por exemplo. É algo para aprimorarmos metodologicamente e sentirmos como as pessoas se engajam ou não porque tem uma questão de tradução para a linguagem técnica-institucional a partir da elaboração das comunidades e movimentos.

Os “gefortes” são espaços de formulação de diretrizes políticas mais amplas. Criamos um, por exemplo, com trabalhadoras na rua, ambulantes e camelôs. Foi esse grupo fortalecedor que nos orientou contra a retirada de camelôs do HiperCentro que a gestão [Alexandre] Kalil acabou de fazer. Uma política higienista, racista, um processo muito truculento.

Com os trabalhadores, entendemos como eles queriam pensar outros caminhos, de feiras permanentes em espaços públicos. Nós não tiramos isso da nossa cabeça porque nem tínhamos repertório para isso.

Tem outras coisas que estamos inventando lá, mas o principal é que o mandato é um grande laboratório em pequena escala. A própria organização interna, os núcleos de trabalho, a “Gabinetona”, que é nossa área comum.

Temos um processo permanente de reflexão, de reuniões dos núcleos de trabalho, de reunião das pessoas da equipe. Temos 41 pessoas na equipe: nós somos 25 mulheres, 24 pessoas negras, 15 LGBTs, uma mulher indígena, 4 moradoras de ocupações urbanas. Não é só para dizer da presença dessas diferenças na equipe, mas para dizer que essas agendas são estruturantes das nossas práticas também. Então é um mandato feminista, antirracista, da quebrada.

CC: E essas pessoas trazem ideias diferentes também…

AC: Sim. Tentamos lidar com essas diferenças não no tensionamento mais convencional porque as esquerdas têm uma memória muito bélica, de competição, de inimigos. Isso pode fazer sentido em alguns contextos, mas em geral, em nossa autoconstrução, é muito destrutivo. Então precisamos pensar em outras maneiras. Falamos em uma política de amor, mas não para cair num sentimentalismo. A convivência é o que produz em nós a possibilidade de confiança e isso é matriz para construir a luta popular. A gente não constrói a luta desconfiando, se maltratando, se aniquilando. Ninguém suporta ficar muito tempo na luta assim. As pessoas vão adoecendo. Precisamos pegar fôlego para ter um novo ciclo de lutas e, se não houver esse cuidado, não vai dar.

As diferenças precisam se encontrar e estar juntas. Porque a convivência é algo que nos educa ou nos maltrata completamente. Nos educa para estarmos em respeito mútuo nessa sociedade. O diálogo é um exercício democrático dos mais raros ultimamente.

CC: Pode dar um exemplo?

AC: Fizemos recentemente um seminário sobre segurança pública cidadã pela Comissão Especial sobre o Genocídio da Juventude Negra e foi um exemplo: conseguimos trazer jovens que estão cumprindo medida socioeducativa, guarda municipal de Belo Horizonte, um capitão da Polícia Militar, trabalhadoras de várias áreas da Prefeitura, ativistas, colegas vereadores, e é muito raro ver tanta diversidade assim num mesmo espaço, em especial para trocar ideias sobre um tema que raramente tem mediações. É um tema que é “bandido bom é bandido morto” ou “fim da Polícia Militar”.

Há uma costura de aproximações que precisamos fazer intencionalmente. Fizemos lá a primeira cena das Diferentonas, de Teatro do Oprimido, preparada para o seminário. Em determinado momento, os guardas municipais disseram “nós queremos entrar nessa cena”. Era uma abordagem truculenta da polícia com um menor e uma mãe na rua. Só que Teatro do Oprimido não se pode substituir o opressor. A ideia é que a pessoa oprimida seja substituída para que se crie uma saída para aquela situação.

E aí os guardas falaram: “Não, nós queremos mostrar de outro jeito essa abordagem”. Rolou um pequeno impasse, porque não se poderia substituir o opressor, mas aí a Cida, que é vereadora e diretora de teatro, disse para tentarmos. E foi muito importante porque os guardas fizeram uma cena praticamente igual à que estava sendo representada antes. Acho que eles não conseguiram perceber que eles estavam indo no mesmo caminho.

Mas essa foi a senha para eles toparem depois entrar como oprimido. Então, com um certo tensionamento, nós conseguimos contornar. A partir do encontro da arte com esse real. Se não for por aí, como convencer um guarda municipal, que disse que ele, como negro, sofreu muito, mas que se esforçou e conseguiu estar lá e que qualquer pessoa negra que se esforçar consegue, se não for por meio do sensível? Para entender que o racismo está para além de algo pessoal para conseguir as coisas? Eu venho da educação popular, com a juventude, e eu acho que a política democrática é um grande processo de educação popular.

CC: E como você vê o cenário da política institucional hoje?

AC: Acho que devemos reconstruir o campo das lutas populares e, mais do que nunca, precisamos ter um esforço de confluência – que é muito caro para nós. O mandato é um espaço de confluência de forças. Não só porque as forças em cada um são insuficientes, são incompletas, são precárias, mas porque atuar em cooperação é uma maneira de cada um trazer uma perspectiva, uma contribuição. Se interconectamos tudo, potencializa.

Mas também por uma questão estratégica, de sobrevivência. Até quando os grupos do campo da esquerda vão ficar se maltratando? Nesse cenário, não são só “eles” e “a gente”: tem muito eles dentro da gente também.

Precisamos ter essa compreensão histórica da transição de um ciclo, do encerramento de uma temporada de atuação com o projeto democrático-popular, e fazermos uma análise em cima do que nós conseguimos avançar até aqui, dos custos altíssimos que pagamos até aqui e do que precisamos lançar para o próximo período. Abrir mão das instituições é um erro. O golpe é exatamente a tentativa da eliminação completa da nossa presença nas instituições – no Judiciário, no Legislativo, no Executivo, na mídia, na própria cultura, no imaginário.

CC: Por quê?

AC: Abrir mão das instituições, achar que só no processo auto-organizado, autônomo, vamos fazer a passagem, é talvez viver um ciclo ainda mais destrutivo, de perdas sociais, de matança, de miséria para a maioria das pessoas. É uma responsabilidade social fazer o debate consequente sobre as instituições. E mais: olhando para as instituições, tentamos aprender com esses erros recentes. Não vamos fazer da ocupação institucional um fim em si. Isso tem que ser recurso para ativar os processos autônomos e trazer de volta deles uma influência institucional.

E também de transição das pessoas e dos grupos que ocupam os espaços de poder. Então aquele investimento clássico de formação de lideranças do PT para ocupar as instituições e que depois aquelas pessoas vão se consolidando e se cristalizando nas instituições, deu errado. Deu erradaço. Nós vamos ter que ocupar já pensando que daqui a pouco eu vou sair, que vai entrar mais gente, que vão continuar trabalhando.

CC: Você está mais otimista ou pessimista?

AC: Eu sou muito empolgada. Acredito nos processos. Sou feliz, acordo todos os dias e penso “gente, vou fazer um mandato”. Por outro lado, é óbvio que o cenário dá um desalento. Mas o que me faz não perder a esperança é acreditar que o que estamos desenvolvendo em pequena escala é a coisa certa no sentido de justiça. Não estamos ali buscando tirar uma vantagem pessoal.

Vejo isso no grupo que está construindo conosco, mesmo com todos os problemas e tensões que temos de tecer uma convivência. É bem difícil. Mas cuidar disso e ajudar a inspirar outros processos talvez sejam as trilhas que vamos ter no próximo período. Essas experiências se interconectarem. É isso que vai dar segurança para a gente. Eu estive em Barcelona, em Guadalajara, tem um bando de gente lá na mesma pilha. Tem muitas experiências assim.

Acho que tem uma travessia dura nos próximos anos, de acirramento da miséria, da violência, porque o bagulho é muito brutal. Por outro lado, a gente não está esperando acontecer alguma coisa, estamos pegando para fazer. É um senso de que é uma responsabilidade nossa também. Por isso eu também estou animadaça.

Fonte: Entrevista de Maíra Kubík Mano, jornalista e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisa a participação e representação política das mulheres. Colaborou Felipe Milanez. Publicado em Carta Capital, 20/11/2017.

Foto de capa: Patrick Arley/Reprodução Facebook.

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