Gênero

Autonomia: como nos tornamos feministas

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Confira o artigo publicado pelo projeto Militância Materna sobre a identificação com o feminismo e a importância de mulheres fortes na criação das crianças.

Boa meditação!

Como nos tornamos feministas

Ou: da importância de mulheres fortes em nossa criação.

Eu sempre ouvi da minha mãe — desde pequena, desde muito antes de sequer ter ouvido a palavra feminismo — que a força feminina corria em nosso sangue; que em nossa família havia diversos exemplos de mulheres que romperam padrões e foram à frente de seu tempo, de alguma forma.

Se hoje o feminismo é estigmatizado, há trinta ou quarenta anos era ainda mais. A ausência de internet também dificultava bastante o acesso a informação sobre, por exemplo, teoria feminista. Como, então, as mulheres se empoderavam, saíam de relacionamentos abusivos e tomavam as rédeas de sua vida? (Porque nós sempre fizemos isso; nomeando-nos como feministas ou não.)

Resposta: por laços. Laços de amizade, laços de carinho, laços de família com outras mulheres que desejam nosso bem e nossa liberdade. Ter modelos em que se espelhar. Ter modelos em que se inspirar.

Fiquem, então, com esse breve relato de uma mulher, psicóloga e mãe, feminista.


Como me tornei feminista

por Valéria M.B.S. Franchini

“Será mesmo que alguém se torna ou já nasce feminista? Fazendo uma brincadeira com a célebre e, ultimamente distorcida, frase de Simone de Beauvoir, provoco apenas para poder encaixar o sangue da minha avó materna, da minha mãe e de outras mulheres da minha família. Então, começando pela minha linhagem, tive uma avó “mandona”, que se impunha. Meu avô fazia muito dos gostos dela, a ouvia muito, a respeitava e a amava muito. O seu exemplo me dizia que mulheres têm que dizer o que pensam, o que querem e que têm o direito de serem atendidas. Resolvi que era um bom exemplo para ser seguido e que essa parte genética minha eu não negaria. Mas nessa época, criança, eu não sabia que fazer valer seu direito enquanto pessoa era chamado de feminismo.

Continuando pela minha linhagem, tive uma mãe que saiu para trabalhar fora e foi ser professora (era uma das possibilidades para mulher) incentivada pelo pai e pela mãe. Foi uma das primeiras mulheres a usar calça comprida na escola (para quem não sabe, não podia) e dirigia carro, ganhava seu próprio dinheiro e dizia que era para eu fazer o mesmo. Eu realmente queria essa autonomia para mim.

Mas a minha primeira rebeldia às imposições de gênero veio quando, às escondidas, eu brincava com carrinhos e com um forte apache dos meus irmãos. O carrinho me inspirava um futuro no qual eu estaria dirigindo com minhas amigas, indo passear… Eu sabia que estava transgredindo algo. As bonecas não tinham a menor graça, minha tentativa de ser maquiadora com canetas esferográficas — não havia maquiagem de criança ou de bonecas na época — me deram fama de transformar minhas bonecas em bruxas, segundo a visão da minha avó. Mas da Susi eu gostava! Ela era pequena, mocinha e se tornou minha cliente de roupinhas, bolsas e acessórios! Eu costurava para ela! Ela, na verdade, me fazia sentir útil, produtiva, fazendo algo de verdade. Acho que até entrei no mercado de trabalho por conta do sucesso que fiz como costureira (muitos risos) e andei fazendo uns travesseiros de boneca para amigas. Mas eu não nomeava nada disso como Feminismo.

Minha infância não foi marcada por um mundo rosa e azul; as roupas eram mais coloridas, os brinquedos também; e muitas roupas unissex passavam de irmãos mais velhos para mais novos. Tenho uma blusa de lã cashemere até hoje que herdei do meu irmão mais velho. A minha infância foi passada numa cidade pequena, com vizinhança cheia de crianças fazendo travessuras no quintal, entrando dentro de tambores e rolando. Tenho uma cicatriz no joelho que prova tudo isso. Brincávamos na rua de bola, queimada , andávamos de patins nas calçadas. Eu andava de short e camiseta e tive uma bicicleta que era feita para meninos porque, de fato, era bem pesada. Até o dia que tiveram a ideia de arrancar o “tanque” — ela ficou mais leve, acho que percebi naquele momento que minha força física não me era muito favorável; mas que, com criatividade, as coisas dariam certo. E não existia ainda a Mulan para nos inspirar, garotas!

Não posso também deixar de mencionar minha mãe bordando tela com lã e deixando meu irmão bordar também. Não, meu pai não implicou, pois ele gostava de se gabar que sabia cerzir calças e pregar botões, ensinado pela mãe — que era muito atarefada, mas que não permitia que os filhos andassem rasgados ou sujos. Gostava também de pentear os cabelos dos filhos quando minha mãe terminava de dar banho neles. Mas seus feitos acabam por aí. A isso se resumia sua participação.

Mas já era alguma coisa. Não chegava aos pés do meu avô paterno que dava banho, dava remédio, levava ao médico. Ele me inspirou a procurar um companheiro com quem eu pudesse dividir as tarefas com as crianças. Ele me ensinou que tudo isso era coisa de pai fazer também. Mas não sabia que com isso ele poupava minha avó de não adoecer psiquicamente de exaustão de tarefas e expectativas como acontece com as mulheres hoje. Eu não sabia que essa seria uma pauta tão cara e importante para as feministas.

Jamais poderia esquecer de mencionar o caminhão bombeiro que ganhei do meu pai! Ele existe até hoje! Sim , é verdade. Em meados de 1974, por aí, meu pai ficou com dó de mim porque meus irmãos não deixavam que eu brincasse com suas coisas e resolveu trazer coisas diferentes das viagens que fazia para mim. Começou trazendo um telefone. Ok, era interessante. Mas o caminhão bombeiro se superou ! Era um brinquedo de menino e era meu! E nele eu colocava minhas bonecas e bonecos para passear! Apagar fogo nunca me interessou. Essa gesto dele foi muito significativo: ele abria um caminho dentro de mim, um caminho de possibilidades, entendem? Acho que ele sabia sim que estava quebrando estereótipos mas não tinha medo algum que eu me “tornasse” um menino por isso.

Bom, nem só de coisas boas a vida é feita. Muitos acontecimentos ruins também fazem parte da minha história e me machucaram, me fizeram questionar o mundo e querer modificar essa forma tão estranha de homens e mulheres se relacionarem. Eu presenciei amigas de infância serem taxadas de “vassourinha” porque ficavam com rapazes sem namorar, eu presenciei pais que não deixavam suas filhas continuarem estudando, a violência era legitimada…

Eu poderia escrever sobre minha adolescência, sobre a época da faculdade, sobre os primeiros anos pós faculdade, casada, tendo que reinventar os papéis tão bem delimitados e definidos socialmente mas que não serviam, não cabiam na minha realidade. Poderia contar sobre a escolha da escola dos meus filhos, sobre como “treinei” ( brincadeira , marido, se você por ventura estiver lendo ) meu marido para ser pai e companheiro, sobre os brinquedos das crianças, sobre a educação que dei aos meus filhos, sobre o quanto aprendo, todos os dias, que ainda tem muito a ser feito para atenuarmos os danos dessa cultura de violência contra a mulher que acaba abarcando o homem também, trazendo sofrimento para ambos. Mas ficaria muito extenso.

Aqui fica um depoimento leve de como me tornei feminista. A pedido de minha filha, nobre guerreira militante feminista, compartilho com vocês um pouco da formação da minha identidade.”

Fonte: Artigo de Furiosa, formanda em Direito, feminista radical, ativista anti-prostituição e anti-pornografia. Publicado por Militância Materna, 20/09/2017.

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