Inúmeros grupos religiosos têm demonstrado a verdadeira compaixão e se recusado a transformar crianças e adolescentes em inimigos da sociedade
A proposta de redução da maioridade penal no Brasil voltou à pauta. Aprovada em 2015 na Câmara dos Deputados, a partir do empenho do ex-deputado Eduardo Cunha em atender a demandas da bancadas evangélica e da segurança (conhecida como “da bala”), é desengavetada agora pelo Senado como medida para a diminuição da violência.
O tema volta à discussão em um contexto de forte expressão de violência, especialmente no Rio de Janeiro, que potencializa a eleição de criminosos bodes expiatórios e de consequentes vinganças.
Esta situação me faz lembrar de uma das narrativas mais conhecidas da Bíblia cristã: a “Parábola do Bom Samaritano“.
Na história contada por Jesus de Nazaré, um judeu que viajava por uma estrada perigosa sofreu violência: foi assaltado, ferido e largado nu e quase morto na beira do caminho.
Um líder religioso (sacerdote) transitava por ali, viu a cena e passou pelo outro lado. Logo depois, outro líder religioso, o que zelava pelo funcionamento do templo e cuidava da música nos cultos (levita), passou pelo mesmo lugar, viu aquele que sofreu violência e foi embora pelo outro lado.
Em seguida, um samaritano, integrante de etnia inimiga dos judeus, cujas disputas históricas não permitiam sequer que se falassem, chegou ao local, viu o judeu caído, machucado e sem roupa, e teve “compaixão” dele. Aproximou-se, limpou as feridas do homem, colocou-o no lombo do seu animal e o levou a uma hospedaria onde cuidou dele. No dia seguinte, pagou as despesas e pediu que o dono do lugar continuasse com os cuidados.
Jesus perguntou, então, ao mestre da lei judaica para quem narrava a história: “quem dos três foi ‘o’ próximo daquele homem?”. A partir da resposta “aquele que o socorreu”, Jesus então disse: “Vai e faz a mesma coisa“.
Esta história tem sido explanada por líderes cristãos como um relato da importância da caridade, de se fazer o bem para quem está em necessidade. “Samaritano” é até o nome de obras religiosas de assistência, tamanho o destaque da parábola e seu símbolo. Chamo a atenção para o fato de esta leitura comum esvaziar, porém, muito a força da narrativa de Jesus.
A história tem duas fortes mensagens: a intolerância é superada em nome da dignidade da vida e quando trazemos para dentro de nós o sofrimento do outro somos impelidos a ele.
De cara, temos um esvaziamento no título dado pelos organizadores de Bíblias à parábola: “O Bom Samaritano”. Claro que ele foi bom. Mas a história de Jesus diz muito mais: o samaritano foi transgressor, subversivo. Socorreu o seu inimigo. Não se vingou dele, deixando-o caído. Rompeu com a convenção que promovia a intolerância entre os dois grupos, subverteu-a, pois entendeu que a vida e a dignidade estão acima de tudo.
Outro esvaziamento está no uso da palavra “compaixão” ou “pena”. No texto original em grego, o termo é “efsplahnízome”, que possui um sentido muito mais denso do que “pena” em português.
Esta palavra significa “sentir nas entranhas/vísceras”. O samaritano viu o homem agredido e sentiu nas entranhas o sofrimento dele. Por isso rompeu com a lógica da intolerância em nome da vida. A ironia é que antes de o samaritano socorrer o judeu, dois religiosos haviam desprezado a dor do seu igual. Passaram de largo. Ignoraram. Não foram impelidos a nada.
A crítica de Jesus é aguda. Se há alguém a se imitar não são os religiosos preocupados com dogmas e regras, com o templo, com o culto, com a música. O exemplo está em quem rompe barreiras, subverte a ordem imposta, em nome da vida, da solidariedade e da dignidade.
Neste contexto em que vivemos, no qual adolescentes envolvidos com o crime são decretados inimigos da sociedade, também temos os religiosos, como o sacerdote e o levita da beira da estrada, que passam ao largo pela situação. Não só: também transformam meninos e meninas em bodes expiatórios e promovem a vingança contra eles. Contribuem, de fato, com mais destruição de vidas que estão em ruínas.
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É preciso, porém, destacar que há aqueles que abraçaram a proposta de Jesus de Nazaré e atuam na contramão de ordens impostas que comprometem a vida e a dignidade humana.
Desde 2015, diferentes grupos evangélicos têm atuado contra a proposta de redução da maioridade penal. O Conselho Nacional de Igrejas (CONIC), que inclui também a Igreja Católica, tem a campanha “Redução da maioridade penal com argumentos religiosos? #NãoEmMeuNome”.
A Frente Evangélica pelo Estado de Direito e a Rede Fale (de juventude evangélica) somam-se a igrejas e grupos de evangélicos espalhados pelo Brasil na oposição à proposta. Condenam a atuação da bancada evangélica e defendem o enfrentamento digno e justo desta questão que envolve a dignidade dos milhões de adolescentes brasileiros.
Neste contexto, a crítica de Jesus permanece viva e aguda. Quem conta para Deus é quem tem “compaixão”. Não quem demonstra a pena que leva a atos de caridade que se extinguem neles mesmos. Conta quem sente nas entranhas o problema do outro e é impelido a socorrê-lo, subvertendo a ordem injusta, não a destruí-lo.
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Fonte: Texto de Magali do Nascimento Cunha, Jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora e pesquisadora em mídia, religião e cultura da Universidade Metodista de São Paulo. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. Escreve às quintas-feiras. Publicado originalmente no site de Carta Capital, 28/09/2017.
Foto de capa: Agência Senado.