“Meu nome é Jociane, sou filha de Judite e Gerônimo. Trago a memoria de Ir. Dorothy…”
“Meu nome é Sandra, filha de Nair e João, trago a memória de Mercedes Soza, mulher militante, cantora dos povos latino-americanos…”
“Meu nome é Raildo, sou filho de Cleonice e Bento, quero lembrar a pessoa de Carmem Lúcia Teixeira…”
Na medida em que cada pessoa foi se apresentando, trazendo simbolicamente a memória das mulheres, uma flor era colocada num vaso. Também foram representadas Dorcelina, Martha Guarani, Tereza de Calcutá, e outras.
De repente, se ouve um conjunto de frases machistas e o vaso é violentamente lançado ao chão. O choque: “Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem durante a instrução, a mulher conserve o silêncio, com toda submissão” (1Tm 2,11-12).
Como fazer “ver brotar o perdão, em sol de primavera” diante de uma cena como essa?
Assim se abriu o seminário “Mulher e Leitura Feminista da Bíblia“, promovido pelo CEBI-MS. O evento aconteceu em Dourados, nos dias 23 e 24 de setembro, e contou com a participação de 36 pessoas, provenientes das Igrejas Luterana (IECLB), Presbiteriana (IPI), Católica (ICAR), Metodista e Batista Memorial.
O encontro foi assessorado pela Pastora Romi Benck, luterana (IECLB) e secretária geral do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs). Antes do seminário, o CEBI-MS acompanhou a Pastora Romi, juntamente com Olga (representante da CESE), em visita a comunidades indígenas Guarani Kaiowá da região.
A Bíblia é um livro em disputa
“Vamos dar à palavra Feminismo a dignidade que o termo merece! Por que discussões sobre temas ligados a situações de dor e de luta por direito das mulheres têm que ser feitas nos porões? Por que os textos bíblicos são tão usados para argumentar que defender os direitos das mulheres e dos pequenos é fazer ‘ideologia de gênero’? Nós mulheres somos a maioria, consideradas minoria como uma forma de nos colocar em posição de inferioridade, assim como se reproduzem as discriminações contra os povos negros, indígenas, contra a juventude, as crianças, e segregando amplas maiorias da sociedade.”
Em suas provocações iniciais, a Pastora Romi lembrou que “precisamos ter claro que a Bíblia é um livro em disputa ideológica”. Ele pode “ser um livro usado para oprimir, para continuar legitimando o patriarcado”, ou pode ser usado para “alicerçar uma espiritualidade que luta por libertação”.
“O conhecimento de uma leitura bíblica libertadora, no entanto, deve oferecer ferramentas que nos impulsionem para um trabalho de incidência pública em função da garantia de direitos.”
Memória Feminista
Sojourner Truth e o momento fundante da teologia feminista
Ao final do século 18, uma negra escrava invade a assembleia dominada por homens em uma igreja estadunidense, exige silêncio e questiona:
“Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? (…) Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso.”
Sojourner Truth (1797?-1883), negra abolicionista, lutadora pelos direitos das mulheres, ao conseguir a liberdade, torna-se pregadora pentecostal, ativa abolicionista e defensora dos direitos das mulheres.
Sob a inspiração de sua luta, as irmãs Sarah Grimke (1792–1873) e Angelina Grimke (1805–1879), juntamente com Elizabeth Cady Stanton (1815-1902) tornam-se as primeiras a questionar a cultura patriarcal presente nos textos bíblicos. Começam a questionar inclusive as traduções da Bíblia. É o nascimento da Teologia Feminista.
Patriarcado legitimado pelos textos das cartas a Timóteo
O grupo se dedicou ao estudo da primeira carta a Timóteo, observando o tema central de cada parte, levantando suspeitas diversas: à época da redação do texto, estariam as mulheres incomodando tanto, a ponto de despertar tamanho autoritarismo machista?
Por que as jovens viúvas não merecem crédito, são acusadas de fofoqueiras (1Tm 5,11-14), ao passo que Timóteo, “apesar da pouca idade” (1Tm 4,12), é tão elogiado? Por que um texto explicitamente misógeno passa a ser aceito pelas comunidades como canônico?
Uma forma de desqualificar o discurso e a articulação das mulheres é acusá-las de bisbilhoteiras e ociosas (1Tm 5,13). Fazendo uso de uma linguagem religiosa, alguém, arrogando-se de uma autoridade sagrada, busca “enquadrar” as mulheres que, ao final do primeiro século, buscavam viver a radicalidade e do movimento de Jesus, para o qual: “não mais diferença entre mulher e homem…” (Gl 3,28).
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Fonte: Partilha do CEBI-MS, 25/09/2017.