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Religiões não precisam ser incompatíveis com Direitos Humanos

Historicamente, as religiões – ou melhor, as lideranças religiosas e alguns fiéis em geral fundamentalistas – têm sido responsáveis por diversas violações de direitos humanos, desde as mulheres queimadas vivas sob acusação de bruxaria pelos Tribunais da Santa Inquisição, ou a imposição de religiões oficiais que produziram as muitas guerras religiosas, até os atuais discursos de ódio e intolerância por vertentes cristãs e atentados terroristas por fundamentalistas muçulmanos.

Nesta época, em que há um Estado que se autointitula Islâmico e usa essa religião para legitimar o uso da violência – ao mesmo tempo em que cristãos marcham em nome do que creem ser uma Supremacia Branca -, ou ainda, para ficarmos em exemplos mais próximos, tempos em que pastores evangélicos atacam (por vezes fisicamente) espaços e fiéis de religiões de matriz africana e conclamam seu rebanho à execração de homossexuais, parece-me importante pensar sobre as relações entre direitos humanos e a prática religiosa, o que só é possível, a meu ver, por meio da tolerância, tanto às religiões como pelas religiões.

Se de um lado esse cenário pode levar a questionar se religiões são compatíveis com Direitos Humanos, por outro, a importância da Reforma Protestante para construção do conceito de liberdade de expressão e pensamento – fundamento da liberdade religiosa – mostra a possibilidade de outra relação com o sentimento religioso, pensando na tolerância às religiões no espaço público e na tolerância pelas religiões na vida privada.

Quando falo em tolerância às religiões, refiro-me o combalido conceito de Estado Laico, fundamental para o exercício da liberdade religiosa. Essa importante expressão de liberdade individual somente pode ser exercida pelo cidadão quando o Estado afasta qualquer fé da arena pública de debates e deixa livres as pessoas para que estas pratiquem a religião que lhes convier na vida privada, sem qualquer importunação.

A liberdade religiosa é uma ideia que surge no contexto das guerras de religião desencadeadas no século XVII após a Reforma Protestante que fez surgir novos grupos de fiéis que não se coadunavam com a fé católica até então hegemônica e detentora de forte poder político, o que significava uma relação de quase submissão dos reis de até então ao poder do Papa.

A Reforma Protestante tem como nota central a dissolução do conceito da fé (no caso, católica) como “Verdade Única”, o que ocorre de maneira concomitante ao desenvolvimento do conceito de indivíduo como pessoa pensadora autônoma: se a fé do Vaticano não é mais universal, cada um é livre para ter como sua própria verdade aquilo em que acreditar, e cada fé terá igual valor, proteção e respeito – consenso ao qual, evidentemente, somente se chegou após muito derramamento de sangue e transformações sociais com consequências profundas.

A questão ainda é de tal modo candente que mesmo hoje há consequências políticas destes fatos: basta lembrar que um dos principais motivos para a Irlanda não fazer parte do Reino Unido encontra suas origens históricas exatamente nessas guerras de religião.

Mas, retornando à questão da passagem da ideia de Verdade Única para a convivência entre as várias verdades das diversas crenças: se todos são livres para professar a fé que faça sentido para si, é dever do Estado proteger essa liberdade. Por outro lado, cabe ao Estado, para garantir a liberdade e a igualdade a todos, estipular normas de conduta que se aplicam a todos os cidadãos, e – ao menos em tese – visando o bem comum. Ora, a minha fé individual pode ser absolutamente incompatível com a fé do meu vizinho: digamos que eu decida, após muito pesquisar e refletir, aderir ao satanismo.

A liberdade religiosa inventada pelos modernos me assegura, a um só tempo o direito de escolher essa fé (ou de não escolher fé alguma) e a garantia de que minha fé será livremente exercida sem qualquer interferência do Estado nem de terceiros.

Na prática, isto implica que, se eu quiser cultuar Satã na minha sala, contanto que eu não interfira no direito de terceiros (por exemplo, realizando sacrifícios humanos – volto a este ponto logo mais), meu vizinho – bem como qualquer agente estatal – está constitucionalmente impedido de adentrar minha sala e me acusar de herege. Da porta para dentro da minha casa (aliás, devidamente protegida pela igualmente constitucional inviolabilidade de domicílio), posso ser satanista, muçulmana, budista, católica, umbandista ou evangélica.

Esse é o Estado Laico

Conceito próximo – mas que com este não se confunde – é o de Estado Ecumênico: o termo “ecumênico” remete ao que é universal ou que busca unidade, e geralmente é empregado para fazer referência à convivência pacífica e respeitosa de valores religiosos diversos em um determinado espaço (daí a se falar, por exemplo, em cerimônia ecumênica, quando os envolvidos no ritual professarem religiões diferentes entre si, mas optarem por uma celebração conjunta).

E é aqui que se torna imprescindível desfazer a confusão: o espaço ecumênico não pode ser a arena política, pois isto implicaria que cada um dos fiéis tivesse espaço para realizar seu proselitismo na tentativa de, pela via política (por exemplo, legislação e políticas públicas) estender a todos os cidadãos os valores que entende ser os mais adequados para se viver. Ocorre que, como vimos, a norma produzida pelo Estado se aplica a todos os cidadãos independentemente de religião, e estender valores satanistas, cristãos ou xintoístas a quem não siga tais preceitos em sua vida privada é evidente ofensa à liberdade religiosa.

Mas, ora, a maioria da população brasileira é cristã, seja católica ou evangélica. Democracia não é fazer valer a vontade da maioria?

Democracia não é sinônimo de vontade da maioria (esta é apenas um método de se escolher o governante, presumindo-se a vontade de todos pela vontade da maioria – falei a respeito em uma coluna de 2015), mas sim de respeito aos direitos das minorias, em decorrência dos princípios da igualdade e da liberdade fundadores da ideia de democracia moderna. Imaginemos que eu, no meu eu-lírico satanista citado acima, me candidate a um cargo do Legislativo e, lá estando, resolva fundar a Bancada Satanista, para defender os valores satânicos.

Digamos que, nesse parlamento (quase) hipotético, nós, satanistas, aliados à Bancada Ruralista, vençamos a votação de um projeto de lei para obrigar ao consumo de uma cota mensal de carne, como forma de estimular a economia do setor. Afinal, a natureza mostra que os animais são carnívoros, e não se pode ir contra as leis da natureza, que, segundo outras bancadas, aliás, são as leis de Deus. Não é difícil perceber que esse projeto bizarro violaria todo e qualquer princípio de liberdade religiosa e autonomia individual: imagine só obrigar um vegano a comer carne em nome da natureza humana carnívora.

Se isso parece injusto, impositivo e inadequado, podemos transportar o raciocínio para uma série de demandas relacionadas à liberdade de escolha e à vida privada: questões relacionadas à identidade de gênero, vida sexual, união civil entre pessoas do mesmo sexo ou gênero, interrupção voluntária da gravidez e esterilização voluntária precisam permanecer na esfera da vida privada do indivíduo – assim como a decisão de comer carne ou não.

Mas então aderir a uma religião implica abdicar de toda e qualquer escolha individual para permanecer integrante do grupo de fiéis e adotar cegamente suas orientações?

Ou a liberdade de cada religião definir suas normas pode ser questionada, ou até mesmo limitada?

Limites devem haver, como em qualquer liberdade: a prática que viole direito de terceiro não pode ser aceita em um Estado democrático (estou utópica hoje, falando aqui em Estado Democrático, vejam vocês). Então se na minha congregação satanista resolvermos praticar sacrifícios humanos, estes atos não estarão no âmbito da liberdade de religião, já que configuram ilícito penal e violam direito de terceiro.

É claro que fiz uso de um exemplo gráfico e exagerado nas tintas, apenas para fins de ilustração mesmo. Mas a vida real tem casos menos nítidos e de cores esmaecidas, nos quais as fronteiras entre a liberdade da religião impor regras e a liberdade individual do fiel são mais borradas. Alguns exemplos clássicos:

  • pode uma vertente evangélica pregar a intolerância à homossexualidade?
  • Pode uma vertente muçulmana limitar a liberdade de vestir das mulheres?
  • Pode a Igreja Católica excomungar uma mulher por ter interrompido uma gravidez?

Entendo que essas perguntas podem ter duas linhas de resposta. Uma primeira linha responderá que sim, que cada religião tem a prerrogativa irrestrita de estabelecer seus dogmas e qualquer limitação nesse sentido seria um cerceamento à liberdade de crença. E quem não se identificar com tais valores tem a liberdade de não aderir à religião. Mas há outra resposta possível para esse questionamento: se a religião e suas normas são construções culturais – e, portanto, humanas – por que não repensá-las e revê-las, em novas interpretações?

Trago aqui alguns casos para pensarmos juntos.

No último dia 20, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria sobre um rapaz gay e evangélico, e quem tem um canal no Youtube destinado a esse público. Para ele, não há incompatibilidade entre sua fé e sua orientação sexual, afirmando ser possível reinterpretar os escritos bíblicos no tempo presente, a partir do universo cultural em que se vive hoje.

Outro caso é o das feministas muçulmanas, associação que pode parecer paradoxal para os padrões ocidentais que sistematicamente relacionam violação de direitos das mulheres ao islamismo, como se a violência misógina fosse um problema exclusivo desta religião. Essas autoras questionam o significado da liberdade construído no Ocidente cristão, considerando contextos culturais, sem, todavia, defender o argumento do relativismo cultural puro em seu sentido pejorativo, de condescendência com injustiças e violações em nome da preservação de um elemento cultural. Acreditam na possibilidade de emancipação das mulheres dentro do Islamismo por meio de novas interpretações, feitas até mesmo por mulheres que não desejam abandonar a religião, mas almejam outra forma de vida.

O terceiro exemplo é o da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, que defende o direito à liberdade e à autonomia (especialmente em relação aos direitos sexuais e reprodutivos), somente compatíveis com um Estado laico e livre de interferência religiosa na criação e condução das políticas públicas.

Ainda sobre o tema da possibilidade de novas leituras de textos religiosos, deixo a dica de leitura: “Os direitos humanos das mulheres nas religiões no século XXI”, livro que compila textos de falas proferidas no 1º Curso de Outono da Escola de Teologia Feminista.

Da mesma forma que autoritarismos e ditaduras encontraram expressão em regimes de esquerda e de direita – o que não implica não se poder conciliar essas vertentes com democracia –  as religiões não precisam ser incompatíveis com os Direitos Humanos, nem precisam ser sinônimo de violência e intolerância, seja no espaço público, seja na vida privada.

Fonte: Texto de Maíra Zapater, Doutora em Direito pela USP e graduada em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Publicado no blog Justificando de Carta Capital, 25/08/2017.

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