O poder concentrado nos líderes religiosos têm sufocado a voz dos leigos, mas a semente do espírito contestatório continua viva
A coluna “Diálogos da Fé” é iniciativa importantíssima em um tempo no qual as religiões têm papel relevante nas dinâmicas da esfera pública, em especial a política. No que diz respeito aos evangélicos, segmento que tem destaque nos espaços midiáticos, no noticiário político, no entretenimento e no mercado chamado gospel, a iniciativa de CartaCapital emerge em tempo relevante: 2017 é o ano em que, mundo afora, são lembrados os 500 anos da Reforma Protestante, marco histórico da origem de todos estes grupos.
O movimento protestante nasce europeu, com a proposta de novas formas de viver a fé cristã a partir de um protesto. Uma posição contra a forma como a grande igreja na época, a Católica Romana, colocava condições para fiéis encontrarem perdão para os seus pecados e estimulava a prática de penitências associada a ações financeiras. Do protesto emergiram reflexões de fé de líderes como Martinho Lutero, o mais conhecido, e Thomas Müntzer, um líder dos “sem-terra da época”, entre outros. Daí nasceram diferentes tradições chamadas protestantes (luterana, reformada/presbiteriana, batista, anglicana, metodista e outras tantas derivadas, entre elas as destacadas pentecostais).
Mesmo com toda a diversidade que marca a existência desses grupos, é possível identificar bases teológicas e doutrinárias comuns: a salvação pela graça, que significa que o perdão de pecados é de graça, pois vem do amor incondicional de Deus, que se alcança pela fé; a Bíblia, palavra de Deus, fundamento de fé e vida; os fiéis como sacerdotes a serviço de Deus, ou a fé na prática. Com isso, os protestantes empreenderam uma popularização da leitura da Bíblia, bem como a ampla atuação e liderança dos leigos (aqueles não ordenados sacerdotes).
Estes grupos chegaram ao Brasil no século XIX, por meio de missionários originários dos Estados Unidos. Um protestantismo transformado por colonos ingleses na travessia do Atlântico e cheio de novos sentidos e adaptações ao que se entendia da realidade latino-americana. A opção pela identificação com o nome “evangélicos” é um exemplo. A história explica que isto se deu, por maioria, numa perspectiva sectária, para se diferenciar dos católicos, colocando-se como os detentores “do verdadeiro Evangelho”.
Hoje, no Brasil, os evangélicos são um segmento cristão tão diverso, com distintas teologias e doutrinas e uma presença geográfica e numérica tão significativa que é tarefa difícil explicá-los, categorizá-los. Em tese, todos teriam aquelas bases comuns da Reforma. “Em tese”, pois devido às transformações ocorridas na trajetória destes grupos, antes e depois de chegarem ao Brasil, é possível afirmar que muito pouco ou quase nada foi cultivado da Reforma em nossas terras.
Isto pode ser identificado em muitas práticas predominantes. Boa parte das pregações e dos cânticos que servem de doutrinação não enfatizam o amor incondicional de Deus. Ao contrário, apresentam um Deus que age condicionado às ações humanas: pela qualidade das orações, pelo sacrifício que se deve fazer para alcançar o que se espera deste Deus (seja por meio de práticas e obrigações religiosas ou de doações/ofertas financeiras), como no tempo das indulgências.
A Bíblia, cuja leitura é instrumentalizada e descontextualizada, acaba por se tornar um livro estéril. O poder e o controle concentrados nos líderes religiosos têm sufocado a voz e a ação dos leigos. Desaparece assim o protestantismo na sua razão de ser.
Precisamos fazer justiça, no entanto, e recordar que há sementes do jeito protestante de viver a fé que foram plantadas no Brasil, na contramão do predominante, e continuam a dar frutos. Com os evangélicos que alfabetizaram tantos brasileiros por meio da leitura da Bíblia. Com aqueles que pagaram com suas vidas o compromisso com a justiça, povoando as prisões da ditadura, resistindo às torturas, enfrentando o exílio ou a morte. Com quem cultua, em comunidade, ao Deus da graça e da vida. Com quem busca forças para viver em vários esforços de solidariedade com empobrecidos, com dependentes químicos, com presos, com vítimas de violência. Como há evangélicos nestas frentes!
Ao escrever sobre o “princípio protestante” o teólogo luterano alemão do século XX Paul Tillich reconheceu que a dimensão profética, contestatória, protestante é própria do Cristianismo, à luz da postura de Jesus de Nazaré. Para este teólogo, a Reforma significou a encarnação deste princípio, uma volta às origens do ser cristão. E ele reconheceu que esse espírito não é propriedade exclusiva de qualquer grupo religioso, podendo se manifestar em diferentes formas religiosas, culturais e políticas. Portanto, ser protestante é uma postura dinâmica que não deve ser exclusiva dos evangélicos. Serve para todas as igrejas. Serve para todas as religiões. Serve para todos os seres humanos. Para a revisão da vida em todos os sentidos. Sejamos, pois, protestantes.
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Fonte: Texto de Magali do Nascimento Cunha, Jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora e pesquisadora em mídia, religião e cultura da Universidade Metodista de São Paulo. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. Publicado em Carta Capital, 10/08/2017.