Direitos Humanos

Toda mulher quilombola é sinônimo de resistência

Eu sou negra nagô
no sangue, na raça e na cor
Quem foi que disse que o negro não tem valor,
que o negro não sente frio
que o negro não sente dor?

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Música “Negra nagô”, de Ana Cleide da Cruz Vasconcelos, a Cleide do quilombo Arapemã

 

Aqualtune, Dandara dos Palmares, Luiza Mahin, Mariana Crioula e Tereza de Benguela são legítimas representantes da luta das mulheres negras pela liberdade de seu povo. Não somente a liberdade, essas mulheres almejaram uma sociedade livre de opressão e racismo, desafiaram as estruturas machistas vigentes em diferentes períodos históricos e estimularam uma série de levantes populares no Brasil.

A força e a inspiração representada por essas mulheres do passado, símbolos históricos da resistência da mulher negra, encontram-se nas Aqualtunes, Dandaras, Luizas, Marianas e Terezas do presente, que nunca deixaram de lutar para transformar a realidade a qual as mulheres negras são submetidas.

Em Santarém, município da região Oeste do Pará, o protagonismo das mulheres quilombolas nas lutas coletivas das comunidades por garantia de acesso à terra e contra violações de direitos humanos é um exemplo da luta das mulheres negras brasileiras que, há séculos criam estratégias de resistência para terem suas vidas, corpos e territórios respeitados.

Organizadas através da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), as quilombolas estão promovendo uma série de atividades que visam fortalecer a articulação das mulheres e reavivar a cultura e identidade das comunidades tradicionais. Ainda, nas várias comunidades da região, as mulheres se organizam politicamente em outros espaços, como as associações comunitárias e grupos de mulheres.

Através da perspectiva de identidade étnica e de gênero, as mulheres avançam no debate sobre territorialidades e fortalecem os processos políticos de suas comunidades. Estimulam novos debates, incitam mulheres e jovens para que se envolvam com o movimento quilombola e provocam o poder público através de estratégias que visam garantir o acesso a direitos básicos como saúde, educação e a tão almejada titulação de suas terras.

A voz e a vez das mulheres quilombolas

Exercendo papel de liderança nas comunidades, a autoridade e influência dessas mulheres que atuam num universo majoritariamente masculino, a esfera política, provoca reflexões sobre seus processos pessoais de descoberta da liderança e sobre transmissão de conhecimentos, coletividade feminina e ancestralidade.

Muito diferentes entre si, vindas de contextos sócio-culturais diversos, as mulheres quilombolas da região se aproximam por um passado em comum, cujas cicatrizes estão frescas e vivamente inscritas em suas consciências. Netas e bisnetas de pessoas que foram escravizadas, a memória do período que foi o maior horror da história brasileira, é latente nas falas dessas mulheres que conhecem melhor do que ninguém o impacto do processo de escravocrata na vida dos quilombolas.

Ivone Carvalho de Jesus, a dona Ivone, da comunidade remanescente Quilombo de Saracura, tem 17 anos de movimento e foi a primeira mulher presidenta da FOQS. Ela conta que iniciou sua trajetória no movimento após o I Encontro de Raízes Negras que aconteceu na comunidade Saracura, onde participou como cozinheira e, desde então, apesar dos desafios que enfrentou por causa de sua limitação com a leitura, nunca mais se afastou e exerceu diversas outras funções.

Ouça o canto de Cleide do Arapemã:

Neta de uma mulher que foi escravizada, ela não tem paciência para aqueles que subestimam a luta quilombola afirmando que “a escravidão já acabou faz tempo” e responde categórica que “pois é esse muito tempo que nós temos que reivindicar hoje”.

Atualmente, é conselheira da FOQS, tem filhas e filhos envolvidos com atividades do movimento quilombola e integra o grupo de mulheres de Saracura “Menina do Quilombo”. Sobre a organização das mulheres, dona Ivone destaca a importância da participação nos encontros e acredita que o maior impedimento para que mais mulheres se envolvam com o movimento são os maridos que, por mais que muitas vezes não as impeçam, não oferecem apoio e não compartilham as atividades de cuidado com filhos e casa para que as mulheres possam participar.

“É muito bom participar pra ir aprendendo o que é melhor pra todos e se mais mulheres começarem a participar, as comunidades vão avançar muito. Porque não é só os homens que lutam não, as mulheres também, então elas têm que se organizar pra poder entrar pra luta”, conta.

Ex-presidente e atual vice da FOQS,  Ana Cleide da Cruz Vasconcelos, a Cleide do quilombo Arapemã, é cantora, compositora e integra o grupo de mulheres “Na raça e na cor”. Destacando como principais conquistas do movimento até agora a representação no Conselho Municipal de Saúde e na Coordenação de Educação e Diversidade Étnico-Racial, e a implementação de escolas em algumas comunidades, Cleide acredita que é primordial formar e fortalecer jovens e crianças para a continuação desse trabalho.

“Conseguir colocar nossos filhos negros dentro da universidade foi uma luta nossa e hoje continuamos nossa luta conquistando as mulheres”, afirma a cantora que coloca em versos a realidade e o dia-a-dia dos quilombos, pautando demandas do movimento quilombola e das mulheres através de suas músicas.

Sobre a condição das mulheres na cultura quilombola, Cleide acredita que o estigma sobre a mulher negra ainda é muito forte e prejudicial para as mulheres quilombolas. Além da violência doméstica, face mais escancarada no machismo, Cleide conta que muitas são impedidas pelos maridos de participar das atividades do movimento. “Tem muitas que aos poucos estão se soltando, mais ainda falta muito e a trava para isso são os maridos”, avalia.

Luta pela terra

Apesar de a Constituição Federal garantir às comunidades quilombolas o direito fundamental de acesso aos seus territórios tradicionais, a realidade enfrentada é outra. A titulação de seus territórios é a principal reivindicação do movimento quilombola, que há décadas espera por esse reconhecimento para ter acesso à uma série de outros direitos básicos.

Sem a titulação muitas atividades de geração de renda ficam comprometidas e as comunidades são sumariamente atacadas por fazendeiros e grileiros da região que adentram em seus territórios desrespeitando e ameaçando seu espaço e seu modo de vida. Além da luta pela garantia da terra, cada quilombo apresenta suas especificidades e desafios relacionados a elas.

Com muitas outras batalhas pela frente, a luta das mulheres quilombolas se desmembra a diversos outros desafios cotidianos que as acompanham. A violência contra a mulher, persistente em muitas comunidades da região, e a eliminação do racismo são centrais na luta das quilombolas do Oeste do Pará que, juntas, continuam a história de luta e resistência de suas ancestrais e constroem uma nova trajetória de um projeto de emancipação coletiva, forte e também ancestral.

Fonte: Por Dayse Porto, comunicadora popular da Terra de Direitos, 24/03/2017.

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